Pratique, Yoga na Vida

Distanciamento que aproxima

Em qualquer observação e reflexão é necessário um observador e um objeto observado. Um sujeito e um objeto. Seja esta uma observação de um fenômeno natural ou uma observação de si mesmo, a relação entre sujeito e objeto está envolvida no processo. É comum em nossas vidas transformarmos coisas exteriores a nós em objetos para analisá-las, conhecê-las e explorá-las, porém a observação de si e a reflexão pessoal é menos estimulada.

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Em qualquer observação e reflexão é necessário um observador e um objeto observado. Um sujeito e um objeto. Seja esta uma observação de um fenômeno natural ou uma observação de si mesmo, a relação entre sujeito e objeto está envolvida no processo. É comum em nossas vidas transformarmos coisas exteriores a nós em objetos para analisá-las, conhecê-las e explorá-las, porém a observação de si e a reflexão pessoal é menos estimulada.

O cientista natural observa fenômenos da natureza, fenômenos externos a ele e essa relação entre sujeito e objeto é mais óbvia e até mais simples neste caso. Os cientistas sociais observam fenômenos que envolvem outros seres humanos, os quais, para eles, são objetos de observação. Nesse caso, o objeto de observação é mais próximo e mais familiar ao sujeito observado, pois estes são seres humanos igualmente dotados de paixões, desejos e subjetividade.

Há outra relação de observação que é própria ao filósofo ou ao yogi. É a observação de si mesmo. O estudo de si mesmo. Quem nunca ouviu a célebre frase socrática: “conhece-te a ti mesmo”. Goethe, esse gênio alemão, que tanto foi um cientista natural com teorias sobre as cores e sobre as plantas quanto um profundo conhecedor da alma humana, disse: “atenta em certa medida para ti mesmo, repara em ti mesmo para que tu venhas a ter clareza quanto ao modo como tu te encontras em relação aos teus iguais e ao mundo”.

Para se ter essa auto-observação é necessário um certo distanciamento de si mesmo. É necessário determinado grau de desidentificação em relação a si mesmo (semelhante a desidentificação que temos em relação à fenômenos externos a nós) para que a própria pessoa, seus pensamentos, emoções, apegos, aversões e comportamento tornem-se objeto de sua própria observação e reflexão.

Geralmente estamos em nossa posição habitual de conforto em relação a nós mesmos, numa postura de identificação e de condicionamento, pouco reflexiva a respeito de quem somos e do que fazemos. Tomamos como absoluto um eu que na realidade é relativo e mutável, que não apenas está no mundo vivendo as experiências, mas é parte desse mundo. Esse eu são as nossas emoções, os nossos pensamentos, o nosso corpo, a nossa energia vital, que está sempre a oscilar, como parte integrante das forças da natureza.

Hora estamos mais dispostos e alegres, hora mais tristes e com menos energia; hora sentimo-nos fortes e confiantes, hora desmotivados e inseguros. Esses são movimentos naturais, como a alta e a baixa do mar, como as estações do ano. A diferença é que nós nos identificamos com esses movimentos. Quando vemos chegar nuvens carregadas que trazem chuva e trovoadas, olhamos para elas e dizemos, “lá vem um temporal”. E logo tomamos as medidas de segurança necessárias para a situação, a partir de uma postura de distanciamento e conscientes de que logo o temporal passará e o sol mostrará o seu brilho novamente.

Porém, quando estamos em estados emocionais, mentais e físicos de tensão, por estarmos de tal maneira identificados, não conseguimos manter o distanciamento necessário para agir conscientes e sabermos que estes são como as nuvens no céu. Foram determinados por algumas condições objetivas, mas logo passarão, serão dissipados.

E assim levamos a vida, grudados e identificados com uma parte minúscula da natureza e da existência, em busca de alegria e sempre a fugir dos sofrimentos. Na vida de muitas pessoas, porém, o sofrimento chega com tal intensidade na forma de uma doença ou na perda de um ente querido, que o deslocamento impõe-se com toda a força. Seja ele um sofrimento que tem início no corpo emocional, mental ou físico não importa, logo esse sentimento toma conta do que a pessoa acha ser, mas que pode levar a pessoa ao seu verdadeiro Ser.

Nessas situações a pessoa se vê realmente entregue ao acaso, dá-se conta de que não tem controle sobre as situações e sobre a própria vida e percebe que tudo aquilo com o qual sempre se identificou é instável e, muito pior, perecível. E é levada a refletir sobre a própria história pessoal. Nesse momento, ela tem diante de si o desconhecido e por trás de si um eu que era enorme e absoluto e que se torna pequeno e relativo. É apenas assim, para muitos de nós, que é criado o espaço necessário para que despertemos a capacidade de refletir sobre nós mesmos e nos darmos conta de que dentro das nossas experiências mutáveis, instáveis e perecíveis, existe algo que sempre nos acompanhou. Esse nosso eterno companheiro de estrada é o observador impassível, a Consciência perene. A Consciência está além das dualidades, das oscilações e do tempo.

O sofrimento é combustível desse deslocamento que faz muitas pessoas mudarem o rumo das suas vidas, de uma identificação com as emoções, pensamentos, corpo, ego para o reconhecimento de si como algo muito maior. Mas o sofrimento não é o único caminho, uma viagem pode causar esse deslocamento, a nossa exposição a uma cultura completamente diferente, o contato com a alteridade, seja ela alhures ou mais próximo do que possamos imaginar. O diferente, o estranho, bate à nossa porta todos os dias na cidade, mas, condicionados que estamos, não temos olhos para ver, para refletir e aprender com esse contato. Então, às vezes, é preciso que o chamado à reflexão bata à nossa porta de maneira mais forte para que possamos sair da nossa posição de conforto de uma vida que consiste apenas em buscas exteriores, a uma vida voltada para o que realmente importa na vida, a descoberta de quem realmente somos.

A prática de Yoga deve trazer esse distanciamento de si mesmo, a desidentificação com a personalidade. E com isso despertar em si o observador para que se reconheça como algo muito maior. Diz-se que Yoga é união. Sim, mas tudo já está unido, já somos um. Nada precisa ser unido, apenas reconhecido. E o reconhecimento nasce a partir desse afastamento de si mesmo e da visão de si, não como separado ou como uma pequeníssima parte, mas como o todo.

E, por paradoxal que pareça, o distanciamento de si, nesse caso, une. Une-nos a nossa real natureza.

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3 respostas para “Distanciamento que aproxima”

  1. Em toda reflexão há o pensante e o pensado… pode-se afirmar portanto que a estrutura da reflexão é esta, em termos tecnicamente filosóficos, “intencionalidade” (pensante – pensado, eu penso o pensado).
    Mas, se EU sou o pensante dessa relação, como explico a autoconsciência? Nesse caso, o pensante (sujeito) tem que se tornar pensado (objeto) para ser conhecido… mas, quem ou o que vai observar o pensante?
    Será preciso um novo sujeito, ou uma nova função do pensamento, como pensante que pensa o pensante que se tornou pensado, e para esse novo pensante se tornar conhecido sera preciso um terceiro… (regressão ao infinito!).
    Desse modo a consciência de mim mesmo não se explica, ou seja, a teoria que afirma ser a autoconsciência um produto do pensamento ou da reflexão parece falha. EU sou imediatamente consciente do pensar… e sei sem mediacao quem ou o que sou… Eu sou sujeito-objeto… Eu sou isso que tudo ve.
    Nesse sentido, talvez possa afirmar que, sou personalidade, mas sou primordialmente o eu puro. Um grande filosofo, compatriota e contemporaneo de Goethe, inaugurador do chamado Idealismo Alemão, contribuiu para esta questão. Grato pelo texto… Que possamos nos conhecer cada vez mais, e viver o contentamente da inteireza.
    Harih om.

  2. Gosto muito dos textos do Tales. Ele consegue explicar com tanta clareza e simplicidade as nuances do Ser e como a psique humana se comporta.

  3. Essa idéia foi exposta de forma bela e concisa. Realmente a vida é muito mais do que parece e esse universo intangivel só observamos quando decidimos acordar ou estamos preparados. paz

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