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Yoga, surf, eau extrême

Estou num avião vindo de Paris para o Rio. Abro uma revista e vejo um anúncio insólito, de quatro longas páginas, cujo objetivo é vender perfumes. Porém, ao invés do usual deste tipo de anúncio, um(a) modelo posando e uma frase dizendo como é sofisticado esse perfume, e porque seria necessário comprá-lo, deparo-me com uma longa citação da Bhagavadgītā. Ilustrando as páginas, fotos de um surfista, sua prancha e uma onda, tubular, enorme, daquelas de cortar o fôlego.

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Estou num avião vindo de Paris para o Rio. Abro uma revista e vejo um anúncio insólito, de quatro longas páginas, cujo objetivo é vender perfumes. Porém, ao invés do usual deste tipo de anúncio, um(a) modelo posando e uma frase dizendo como é sofisticado esse perfume, e porque seria necessário comprá-lo, deparo-me com uma longa citação daBhagavadgītā. Ilustrando as páginas, fotos de um surfista, sua prancha e uma onda, tubular, enorme, daquelas de cortar o fôlego.

Sim, ela mesma, a Gītā, a maior aula de Yoga da história, está sendo usada por algum guru do marketing para vender perfumes. No trecho citado no anúncio, Kṛṣṇa instrui o príncipe Arjuna sobre como alcançar a serenidade. A citação parece ter sido muito bem escolhida como contraponto à cena da onda amedrontadora, aliás:

Mas aquele que tiver autocontrole,
que se relaciona com os objetos sensoriais
sem projetar neles desejo nem aversão,
alcança certamente a serenidade.
Nessa serenidade, todas as aflições
desaparecem de uma só vez e para sempre;
quando seu coração se torna sereno,
sua compreensão é clara e firme.
Aquele que não tem disciplina carece de sabedoria,
bem como de unidirecionalidade da mente;
sem concentração não há paz;
sem paz, onde encontrar a felicidade?

Esta é uma brilhante metáfora, diga-se de passagem, sobre o saṁsāra, a vida de preocupações, e a possibilidade de viver com serenidade apesar das preocupações. O paradoxo: quem assina o anúncio, em garrafais letras vermelhas, é a Chanel. A primeira pergunta que veio à minha mente foi “o que é que a indústria busca com esta peça?” Evidentemente, vender suas águas cheirosas.

No caso, uma água cheirosa com um nome curioso: eau extrême ou “água extrema”. Caramba. Chanel é uma fabricante francesa de perfumes de luxo. Os anteriores anúncios que lembro desta indústria sempre foram associados ao glamour, à elegância e às suas filhas bastardas: a vaidade e a futilidade.

O surf é uma atividade que desde o século passado sempre esteve associada à contracultura, a um modo de vida alternativo, longe do mainstream. Surgiu como esporte da classe média baixa do pós-guerra, depois de ter morrido como religião nas mãos dos missionários puritanos que ocuparam a Polinésia na era colonial.

Porém, hoje em dia esta atividade antes marginal vive uma popularidade sem precedentes: a mídia está encima dos surfistas e imagens de surf são associadas aos mais diversos produtos em campanhas de marketing.

Mesmo nessa situação, não deixa de ser interessante esta associação entre surf, Yoga e perfume. Já estamos habituados a ver imagens de pessoas praticando posturas de Yoga nas embalagens de cereais ou complexos vitamínicos, nos anúncios de seguros e poupanças, dentre outras situações insólitas. Também estamos acostumados a ver representações de surfistas em publicidades de carros, multinacionais de combustíveis e achocolatados, entre outros. Até aí ninguém se espanta.

Já vimos também anúncios de pessoas nuas em posturas de Yoga com o objetivo de vender meias e outros produtos menos nobres. O tempo vai passando, a moda do Yoga continua, e vamos aos poucos perdendo a capacidade de nos indignar com o que é ofensivo ou representa o Yoga de forma pejorativa ou distorcida.

Agora, esta é a primeira vez que vejo uma citação da Bhagavadgītā num anúncio. Perguntei a várias pessoas numa rede social o que elas achavam desta curiosa campanha. A resposta mais clara veio do meu amigo Renato Carvalho, webdesigner que criou a atual versão do site www.yoga.pro.br:
“A ideia não é fazer com que os surfistas e yogis tornem-se consumidores de perfumes franceses. A ideia é fazer com que os consumidores de perfumes franceses tenham a ilusão de que esse produto lhes aproximará da liberdade dos surfistas e yogis, de que esse público tanto sente falta”.

Ao ler a explicação do Renato pensei no velho problema do vazio existencial: a sociedade de consumo continua buscando maneiras de nos convencer de que o ato de comprar pode sim, trazer a felicidade que estamos buscando. Para realizar esse objetivo, apela-se mais uma vez para os símbolos (o surfista, a onda, o oceano) e os textos (a Bhagavadgītā, no presente caso) que revelam essa felicidade.

Não desejo criticar a iniciativa da empresa para vender seus perfumes. Apenas estou manifestando meu desconcerto. Acredito que, independentemente do contexto, ler a Gītā ou partes dela é algo sempre auspicioso. A tradução dos trechos citados é muito bem feita, aliás.

Mas não deixa de ser engraçada a iniciativa da indústria de apelar para o milenar conhecimento do Yoga com o intuito de vender perfumes. Cabe a cada um decidir se vai ficar usando seu próprio perfume (ou nenhum perfume) ou se vai trocar para a eau extrême de Chanel.

Namaste!


Publicado originalmente no Yoga Journal: www.yogajournal.com.br.

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
Biografia completa | Artigos

subhashita

Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
  ·   1 minutos de leitura

8 respostas para “Yoga, surf, eau extrême”

  1. Eu uso e aprecio os perfumes e também me abasteço com os ensinamentos dos textos sagrados e das práticas diárias, que vão muito além do mat. A mídia usa as ferramentas mais abusadas para se aproximar dos consumidores, mas é uma questão de identificação.
    Não achei adequada a associação da Bhagavadgita; com o produto em questão, agora é um tanto ousado dizer que consumidores de produtos franceses \\\’sentem muita falta da liberdade dos yoguis e dos surfistas\\\’.
    A pessoa pode perfeitamente praticar yoga usando um perfume francês e nem por isso estar afastada do que realmente importa. Pensem nisso colegas.

  2. No fundo acho bom difundir um verso da Bhagavadgita; numa revista comercial, aonde falta conteudo. E acho divertido associa-lo ao surf, apesar do verso falar de algo diferente da experiencia de pegar um tubo. (Eu surfo.) 

    Acho que todo mundo sabe que é um faz de conta: que é obvio que um perfume nao te leva a entender e muito menos a experienciar o que o texto sagrado propoe. fica mesmo um pouco ridiculo.

    Mas… é uma boa pensar que o ser humano nao esta mais contente com simplesmente ficar cheiroso, mas no fundo deseja algo muito \\\’maior\\\’, (assim o marketing tem de oferecer algo que realmente toque mais fundo pra chamar a atençao- como a sua por exemplo)

    Eu particularmente, sendo radical no outro “extreme” associaria o desapego à aversao, serenidade, paz, etc. ao pensamento de que quase todos os cosméticos, e até o desodorante, sao desnecessários… (aliados à uma higiente básica, claro).
    O seu cheiro natural muito é bom, e autêntico, acredite!

  3. Olá Pedro,

    Quero só dizer que este anúncio pode ter um lado positivo.
    Quantas pessoas poderão ser inspiradas pela imagem ou texto e começar a praticar surf ou yoga?
    Também eu comecei a surfar (em 1986) depois de ver o anúncio do after-shave “Old Spice” na televisão (em Portugal).
    E nunca usei Old Spice…

    Hari Om.

  4. Caro amigo Pedro,
    o que é todo este nosso mundo? Este universo holografico onde estamos inconscientes das particularidades sutis que nos rodeiam.
    A própria ciência dos mantras me traz tranquilidade quanto as publicidades que distorcem o yoga e toda a sabedoria existente dentro do contexto dos praticantes, quantas ilusões nos fizeram voltar para o caminho espiritual?
    E qual o caminho que não nos conduz ao aprendizado? Estas pronunciações da Gita nunca perderão o valor, sempre serão decretos que nos conduzirão a expansão consciencial, citar a Gita na esperança de transpor todos os valores do Yoga para uma simples “agua com cheiro”?
    Até quando vai durar toda esta ilusão? Eu não sei, o que sei é que cada um tem seu tempo, e por mais que alguns rios dêem muitas voltas eles sempre acabam no mar.
    É impossivel deturpar o Yoga, visto que o mesmo é demasiadamente abstrato para as consciencias deste pequenino planeta, e que suas verdades são atemporais e inteligíveis.
    Namaste, a minha essencia interior reconhece Deus em tudo.

  5. Caro Pedro,

    A interpretação do Renato é perfeita. As estratégias de marketing são bem sutis e procuram atingir o subconsciente de cada indivíduo.

    Da mesma forma que a Chanel, milhares de outras marcas não vendem aquilo que fabricam, mas sim, a idéia com a qual está subentendida o consumo de determinado produto.

    Os cursos de marketing adoram exemplificar isso dizendo que a Avon não vende perfume. Ela vende “a esperança da mulher em ser bonita.”

    Apesar do desconforto das mulheres com esta afirmação, responda por qual motivo uma mulher feia adquire produtos da Avon?

    Por estar “antenado” no Yoga, o anuncio lhe chamou à atenção. Seu desconcerto foi ter descoberto que seu estilo de vida tem sido o sonho de consumo de milhares de pessoas.

    Por estar na crista da onda, não se surpreenda se encontrar sua imagem associado a algum produto, como ícone da moda.

    Namastê.
    =====================
    Oi Paulo, 

    Obrigado pelo comentário. Suas observações são muito boas. Sim, já tentaram vender algum produto usando a minha imagem, mas achei isso absolutamente constrangedor e imoral e não aceitei. Você també está antenado!

    Abraço e namaste!

  6. Sem querer mudar de assunto, mas a desnecessidade de perfumes já era apontada por aqueles que se direcionam para a essência da vida: Erich Fromm em “Do Ter ao Ser” ressalta o que evitar citando Buda:
    “\\\’Não participarei de conversa de baixo nível, é vulgar, mundano e inútil; não leva ao desprendimento, imparcialidade, à pausa, à tranquilidade, ao conhecimento direto, ao esclarecimento, ao nirvana; a saber, a conversa sobre reis, ladrões, ministros, exércitos, carestia e guerra; sobre comida, bebida, roupas e alojamento; sobre grinaldas, perfumes, parentes, veículos, aldeias, municípios, cidades e países; sobre mulheres e vinho, fofocas de rua e a saúde; conversa sobre antepassados, sobre várias bagatelas, contos sobre a origem do mundo e do mar, conversa sobre as coisas serem dessa ou de outra meneira e assuntos similares.\\\’ Assim, Buda tem uma clara compreensão dela.”
    Assim, penso que usar a fragrância de outra essência é desprezar a própria.
    Namastê!

  7. Querido amigo Pedro,

    No meu mestrado de administração tive aula de Antropologia com um professor que tinha uma linha de estudo sobre o mundo mágico da publicidade.

    Ele mostrava como as peças publicitárias contam histórias mitológicas que nos transportam para mundos imaginários onde tudo é possível.

    De como as marcas formam os Totens de nossa sociedade. Através do que é mostrado em seus anúncios, as pessoas vão criando identidades e buscando suas tribos.

    Ao ver a peça da Chanel, com a foto do surista e a citação com as frases do Bhagavadgita (que sempre trazem para mim uma sensação de felicidade e pertencimento), pensei em comprar o perfume.

    Quem sabe que na sua essência tenha um pouco de todo o êxtase que desenhar linhas numa onda e parar para meditar podem proporcionar.

    Se não tiverem, pelo menos minha namorada vai ficar feliz de me sentir com um bom perfume :)…

  8. It\\\’s all about branding, my dear. Eles não têm mais o que inventar; precisam de novas fontes!

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