Pratique, Yoga na Vida

O Yoga e a Morte

A morte inspira medo. Em nosso cotidiano, via de regra, procuramos varrer convenientemente esse tema para baixo do tapete, ocupados como estamos na busca do conforto, a prosperidade e a satisfação. Porém, em alguns momentos, ele surge intempestivamente, nos invade e passa como um rolo compressor por cima da nossa frágil estabilidade emocional.É dito que se não estivermos prontos para viver, tampouco estaremos preparados para morrer.

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O Śrīmat Sanatsujātiyaṁ

A morte inspira medo. Em nosso cotidiano, via de regra, procuramos varrer convenientemente esse tema para baixo do tapete, ocupados como estamos na busca do conforto, a prosperidade e a satisfação.

Porém, em alguns momentos, ele surge intempestivamente, nos invade e passa como um rolo compressor por cima da nossa frágil estabilidade emocional.

É dito que se não estivermos prontos para viver, tampouco estaremos preparados para morrer.

Portanto, se neste preciso momento não estamos imediatamente ameaçados pela visita da morte, vale a pena tirar um momento para refletir sobre o que ela significa, mantendo um pouco de equanimidade. Isso pode nos trazer um olhar mais apreciativo sobre a própria vida que temos hoje.

Através dessa reflexão poderemos igualmente nos preparar para quando, inevitavelmente, precisemos olhar para a morte, seja na forma da despedida de algum ente querido, seja na forma da aceitação da nossa própria condição. O exercício de aceitar a fragilidade da vida humana nunca está demais.

Para fazê-lo, pensamos que seria uma boa ideia convidar o amigo leitor para olhar para um episódio do grande épico hindu Mahabhārata, no qual este tema surge com muita contundência e, sua solução, igualmente com muita clareza.

morte

Guerra à morte

Há um provérbio na Índia que diz que se algo existe, está no Mahabhārata. E que, se não estiver no épico, é porque não existe. Desta maneira, o tema da morte não podia estar ausente dessa obra, que representa uma bela alegoria sobre a própria condição humana.

Esta obra, oito vezes maior que a Ilíada e a Odisséia juntas com seus mais de 100.000 versos, é uma linda aula sobre Yoga e autoconhecimento.

As linhas gerais do épico são históricas mas, naturalmente, ele contém muitas licencas poéticas, abrangendo todos os assuntos possíveis: religião, filosofia, poesia, linguística, semântica, política, administração, história, estratégia, emoções, psicologia, identidade de gênero, organização social e familiar, valores e, é claro, mokṣa, a liberdade, que é o objetivo do Yoga.

No texto encontram-se vários diálogos, afora a célebre Bhagavadgītā, que apresentam a vida de Yoga, o cultivo dos valores e como aplicá-los na dinâmica da vida, e o significado de mokṣa como propósito humano fundamental.

O épico sempre leva em consideração a pessoa que o lê ou ouve (antigamente, trechos dele eram recitados com acompanhamento de música, em festividades religiosas).

A linha narrativa central do Mahabhārata é a imensa rivalidade, que deu lugar a uma guerra sem quartel, entre duas facções da mesma dinastia: Kurus e Paṇḍavas. Os primeiros lutam pelo poder.

Os segundos, pelo dharma, pelo que é justo e em defesa do povo, que foi submetido pela arrogância e o autoritarismo dos Kurus. Dhṛtaraṣṭra, o rei cego, é o patriarca dos Kurus.

No momento deste diálogo que nos ocupa, faltam poucos dias para que os exércitos travem a batalha final. O rei, sabendo que seus 101 filhos estão acampados à beira do campo de Kurukṣetra, onde a guerra terá lugar, está muito tenso e inquieto. Por mais que tente, não consegue dormir. Seu coração presente que seus descendentes irão morrer, junto com muitos outros guerreiros.

Há solução para a morte?

Assim, Dhṛtaraṣṭra pensa se existe alguma maneira de se livrar da morte. Chama seu meio-irmão e conselheiro Virudha e lhe pergunta se existe alguma solução contra ela. Faz, basicamente, as mesmas perguntas que Naciketas faz a Yama, o deus da morte, na Kaṭhopaniṣad.

Virudha responde-lhe que sabe mas que não está qualificado para ensinar: “posso falar sobre dharma, mas não sou um professor. Isso só pode ser ensinado por um professor qualificado.

Ninguém melhor que Sanatkumāra ṛṣi, também chamado Sanatsujāta, que foi mestre de Nāradamuni. Pense nele e ele irá aparecer para lhe ensinar”.

Virudha volta a dormir e o rei cego, buscando um lugar tranquilo, senta e invoca o sábio, que se materializa frente a ele. Dhṛtaraṣṭra, em primeiro lugar, lhe coloca a pergunta sobre a morte. Logo o diálogo irá derivar para os temas do autoconhecimento, as atitudes corretas, o Karma Yoga e a emancipação.

Sanatkumārasujātam é o nome da criança sábia. O nome Sanatkumāra quer dizer aquele que é eternamente jovem. Sujāta significa bem nascido, bem feito. Desta maneira, o diálogo entre eles começa abordando a questão da morte.

O que Sanatkumāra responde à primeira questão (“a morte não existe”), e o diálogo que se sucede, é conhecido como Sanatsujātiyaṁ , “O Ensinamento de Sanatsujāta”.

Não obstante a verdade e profundidade das suas palavras, o menino Sanatsujāta falhou na missão de ensinar o rei, pois eles foram mesmo para a guerra e tiveram o trágico fim que o rei presentiu. O problema não estava no professor mas no aluno: a cegueira de Dhṛtaraṣṭra não é apenas física.

A voragem da guerra do Mahabhārata arrastou todos os guerreiros para a morte, um após o outro. No fim, os Paṇḍavas, comandados pelo célebre príncipe Arjuna, conseguem uma vitória pírrica, mas o dharma prevalece.

Primeiramente, iremos aqui citar o trecho que aborda especificamente o tema da morte no diálogo entre o menino e o rei, para depois, com a ajuda das inspiradoras palavras do nosso mestre, Swāmi Dayānanda, com quem tivemos o privilégio de estudar este texto na Índia alguns anos atrás, tecer alguns comentários sobre ele.

Esse trecho ocupa os versos um a 16 do primeiro capítulo desta seção do épico e diz assim:

“Vaisampayana disse: “Então, o ilustre e sábio rei Dhṛtarāṣṭra, havendo aplaudido as palavras faladas por Virudha, inquiriu Sanatsujāta em segredo, desejoso de obter o mais elevado de todos os conhecimentos.

“E o rei questionou o ṛṣi dizendo, “ó Sanatsujāta, ouvi dizer que você é da opinião de que não há morte. No entanto, é dito que deuses e asuras fazem práticas de austeridade como forma de evitar a morte. Desses dois diferentes pontos de vista, qual é o verdadeiro?” 1.

Sanatsujāta disse: “Alguns dizem que a morte é evitável através de certas ações particulares; outros opinam que não existe morte; me perguntas qual desses pontos de vista é o verdadeiro. Escuta minhas palavras ó rei, enquanto discurso sobre isso, de maneira que suas dúvidas possam ser removidas”. 2.

“Saiba, ó kṣatriya, que ambas opiniões são verdadeiras. Os educados são da opinião de que a morte é um resultado da ignorância. Eu digo que ignorância é morte e, portanto, que a ausência de ignorância é imortalidade. É por causa da ignorância que os asuras tornan-se sujeitos a derrota e a morte, e é a partir da ausência da ignorância que os deuses atingem a natureza de Brahman. 3.

“A morte não devora as criaturas como um tigre, ela não tem uma forma definida. Além disso, alguns imaginam que Yama seja a morte. Isto, no entanto, acontece por causa da fraqueza [limitadora] da mente. 4.

“A busca de Brahman ou autoconhecimento, é imortalidade. Esse Deus da Morte, que habita a região dos ancestrais, é a fonte da virtude para quem cultiva a retidão e a fonte do sofrimento para quem vive no erro. 5.

“É obedecendo ao seu comando que a morte, na forma de ira, ignorância e raiva, acontece entre os homens. 6.

“Tomados pelo orgulho, os homens se desviam do caminho reto. Deles nenhum é bem sucedido na tarefa da conquista da natureza real. 7.

“Com o entendimento nublado, e tomados pelas paixões, identifican-se com seus corpos e morrem repetidamente. Eles estão sempre dominados pelos seus sentidos. É por isso que a ignorância recebe o nome de morte.

“Aqueles homens que desejam o fruto da ação, quando é chegado o momento de desfrutar desses frutos, são conduzidos para o céu, abandonando os seus corpos. Portanto, eles não podem evitar a morte.

“Criaturas encarnadas, vivas, inaptas para alcançar o conhecimento de Brahman identificadas com os desfrutes terrenais, continuam incessantemente subindo, descendo e girando no ciclo de renascimentos. 8.

“A inclinação natural do homem em relação a propósitos ilegítimos é a única causa do erro a que são induzidos os sentidos. A pessoa que é constantemente afetada pela busca de objetos irreais, lembrando apenas aquilo com o qual ela está a cada momento ocupada, valoriza apenas os desfrutes terrenais dos quais se cerca. 9.

“O desejo do desfrute é o primeiro destruidor dos homens. Lascívia e ira seguem em seguida. Estes três, o desejo , a lascívia e a ira conduzem os tolos à morte. 10.

“Aqueles no entanto que, através da autodisciplina, conquistaram o ser, escapam da morte. Aquele que conquistou o Ser sem ser subjugado pelas ambições e as venceu, reconhecendo que estas não têm valor, com a ajuda do autoconhecimento, é chamado sábio. 11.

“Ignorância, assumindo a forma de Yama, [o deus da morte], não pode devorar o sábio que controlou os seus desejos desta forma. 12.

“O homem que segue os seus desejos é destruído junto com eles. No entanto, aquele que consegue renunciar aos desejos, pode certamente dispersar sua influência. O desejo é de fato ignorância, trevas e sofrimento em relação a todas as criaturas, pois tomados por ele, perdem os sentidos. 13.

“Assim como pessoas intoxicadas andam tropeçando nos buracos da rua, da mesma forma os homens, sob a influência dos desejos, enganados por alegrias ilusórias, correm em direção à destruição. 14.

“Que pode a morte fazer contra aquela pessoa que não se deixou confundir, nem distrair pelo desejos? Para essa pessoa, a morte não inspira medo, é como um tigre de madeira. Portanto ó kṣatriya, se a existência do [apego ao] desejo, que é ignorância, deve ser destruída, nenhum [apego ao] desejo, por mínimo que seja, deve ser pensado ou buscado. 15.

“Este Ser, que habita seu corpo, associado à ira, à raiva e à ignorância, é a própria morte. Sabendo que a morte surge desta maneira, aquele que confia no conhecimento não guarda medo dela. De fato, assim como o corpo é destruído sob a influência da morte, a própria morte é destruída quando fica sob a influência do conhecimento”.” 16.

Não há morte para o Ser

O rei cego pede ao sábio instrução sobre a natureza da morte. Porém, logo no início do diálogo, o menino diz que não existe algo chamado morte. Como é que ele pode dizer isso? Todos sabemos que ela existe, sim. Se a morte não existisse, porque as pessoas iriam querer fugir dela? Há alguma confusão a respeito disso.

Tomemos por exemplo na célebre invocação asato ma. Ele diz, “Da morte, conduza-me à imortalidade”. Amṛtyu significa o mesmo que mokṣa: ver-se livre da morte. A Chāndogya Upaniṣad também fala sobre este assunto, deixando claro que até mesmo os devas (deuses) morrem. “Gostaria de compreender esta aparente contradição. Esse é meu desejo”, diz Dhṛtarāṣṭra.

Todos os seres vivos estamos sujeitos a momentos de prazer e sofrimento. Podemos em algum momento nos sentir alegres, porém, antes mesmo de nos dar conta disso, a alegria já se foi. Isso acontece todo o tempo, pois estamos condicionados pelo saṁsāra. É preciso acharmos uma solução para essa aparente contradição.

É um fato que estamos condicionados pelo tempo e pelo espaço. Isso é uma realidade. É algo que não muda. Se somos Ātma, ilimitado em termos de tempo/espaço, deveríamos levar em consideração o ensinamento deste mantra; liberar-nos da noção da morte: que, da morte, que possamos ir à imortalidade.

A morte é para os organismos. Nós não somos organismos

Apresentando-se Dhṛtarāṣṭra como um siśya (estudante), Sanatkumāra irá lhe transmitir o ensinamento que ele pede. Se os organismos morrem, se a morte sobrevêm para todos os corpos, isso é apenas um epifenômeno, um evento químico, por assim dizer. Não há dúvida de que a morte é apenas para os organismos. O corpo morre.

Nesta vida, viajamos de um lugar para outro dentro destes corpos, que estão limitados pelo tempo e pelo espaço. Ocasionalmente, apesar dessas limitações espaço-temporais do corpomente, conseguimos nos aceitar como somos. Ocasionalmente, nos vemos como totalmente aceitáveis. O conhecedor de ātma é aquele que não tem mais confusões a respeito de quem ele é.

Sanatkumāra irá esclarecer essa confusão no texto. O Śāstra ensina e clarifica a este respeito. A explicação que Dhṛtarāṣṭra pede é para ficar tranqüilo em relação ao seu próprio “investimento emocional”, que são seus filhos. Antes que Arjuna e o exército dos Paṇḍavas comecem a guerra com Duryodhana, ele precisa um esclarecimento para saber o que irá acontecer com seus filhos, caso morram.

Formas nascem e morrem. Ātma é não-nascido e imortal

Olhando à nossa volta, perto e longe, observamos formas e mais formas. Formas e substantivos ficam totalmente associados em nossa mente. Se eles são a mesma coisa, quando a forma muda, o nome muda. Se a forma não muda, o nome não muda. A maneira em que este assunto é introduzido é muito bela.

Vyāsa, o narrador, apresenta Dhṛtarāṣṭra como um rei que, pelo menos naquele momento, está são e vivo. Há uma conclusão lógica para o ciclo dos seres vivos. Evitando certos tipos de karma e assumindo outros, podemos escapar do saṁsāra. Podemos, como diz o mantra, ir da morte para a imortalidade. Dizer que não existe morte equivale a dizer que não existe nascimento.

Ātma não nasce nem morre. Não cresce nem declina. O sábio começa afirmando no quarto verso que desde o início da criação existe o medo da morte e existem as tentativas de se livrar dela. O rei lembra que alguns sábios dizem que a morte é real, enquanto que outros dizem que não existe morte.

Morrer é não reconhecer a si mesmo como Ātma

Sanatkumāra nos mostra que a morte nasce da ignorância, e que não precisamos aceitá-la se for uma noção nascida da ignorância ou de uma percepção falsa. Somos testemunhas, pessoas capazes de observar.

O mundo é o que vemos. Somente existem sujeito e objeto. Essa é a realidade. Concluir que isto (sujeito + objeto) seja dualidade não é, necessariamente, verdadeiro.

Dizer “isto é real porque eu estou vendo”, não é necessariamente válido para todas as situações vividas pelos humanos. Vemos a terra plana, mas isso não é real, pois sabemos que ela é geóide. Vemos o céu azul, mas isso não é real, pois sabemos que o ar não tem cor. Vemos uma estrela brilhando, mas isso não é real, pois esse brilho data de milênios atrás. Onde está, então, a verdade?

Aquilo que geralmente se chama morte é designado pelo menino com a palavra prāmadaḥ, que significa não reconhecer aquilo que o Ser é, nem conseguir distinguir o Ser do não-Ser. A causa do mundo, incluindo-se aí nosso corpomente, é o Ser. Prāmadaḥ é a incapacidade de reconhecer o Ser. Sanatsujāta explica este termo dizendo que ele sintetiza a falta de reconhecimento de Brahman.

Mais adiante na conversação, o menino sábio recomenda ao rei não ficar indiferente ao estudo diário (svādhyāyaḥ) já que a incapacidade de reconhecer o Ser irá manté-lo preso no saṁsāra, como de fato acaba acontecendo.

Quando não há discernimento nem conhecimento da auto-identidade, todos os sinais aprofundam a confusão original, nascida do prāmadaḥ. Não obstante, a morte não sobrevém para o emancipado, jīvanmuktaḥ, pois ele se conhece como o Ser é a verdade de tudo.

Devas e asuras

Devas e asuras procuram o amṛta, o licor da imortalidade. Os asuras, eventualmente, conseguem obté-lo. No entanto, possuir o néctar da imortalidade não é o suficiente: é necessário merecé-lo e saber conservá-lo.

Viṣṇu, sob a forma de Mohinī, seduz eles com sua dança e acabam perdendo-o amṛta. Eles são prāmadaḥ. Asuraḥ significa popularmente demônio.

Porém, etimologicamente, esta palavra deriva de asu-sura-mate, termo composto que designa uma pessoa muito extrovertida, que não consegue manter um espaço interior de reflexão para avaliar realmente o que precisa.

Define uma pessoa que não tem foco, que não tem discernimento nem faz nada para merecer sair desse estado. Puruṣartha é aquilo que é desejado por todos, o conjunto dos propósitos humanos. Um asura não tem claro o que quer para si mesmo, é alguém que ignora seus puruṣarthas.

O mar de leite do qual o licor da imortalidade é extraído, representa o Veda, o Conhecimento. Os asuras fizeram o imenso trabalho de bater o leite para extraír o néctar das profundezas mas, quando chegou a hora de usufruir do conhecimento, e não estando preparados para isso, o perdem, seduzidos pela dança de Viṣṇu/Mohinī.

Dharma e vida

Existe uma matriz de valores universais que nasce do bom-senso. Essa matriz é o dharma, e é inato em todos. Dizemos inato, no sentido de que o dharma é, por um lado, a convicção de saber perfeitamente de quê maneira desejamos ser tratados.

Isso é metade do assunto, enquanto o outro lado, por vezes menos evidente, é estender esse mesmo direito aos demais, aos reinos animal e vegetal, bem como a meio-ambiente.

Na busca da realização dos nossos objetivos, não devemos atropelar esses valores. Não devemos passar por cima da busca da felicidade dos demais. A ignorância de si mesmo é o prāmadaḥ original. Isso é o que nos torna inaceitáveis perante nós mesmos. Por momentos, encontrar a satisfação dos desejos e da segurança pode não ser fácil, sem atropelar o dharma.

Nunca deveriamos tentar ir contra o dharma como um puruṣartha, na tentativa de satisfazer os dois primeiros objetivos humanos, que são o prazer e a segurança, mas fazer com que todos eles trabalhem na mesma direção.

Se eu sou o problema, a solução não está nem sequer na minha mente. Está em mim mesmo. Sanatkumāra expõe desta forma o problema para o rei cego.

Yama como símbolo da morte

Podemos ver um tigre ou uma pessoa que matou alguém perambulando por aí, mas nunca veremos a própria morte, que também é chamada “aquele que coloca um fim em todos”, Kala. Yama-Kāla, é representado como um imponente deus de pele verde resplandecente e olhar penetrante, vestido de vermelho.

Usa um laço para guiar àqueles que abandonam o corpo, e uma maça, com a qual pune o adharma. É filho de Vivasvat, o Sol, e sua esposa Saraṇyū e cavalga um búfalo negro. Ele é considerado o rei do plano dos ancestrais, pitṛlokaḥ rājaḥ.

A morte pode se manifestar através de diferentes veículos, mas não tem um corpo próprio. Às vezes ela se manifesta sob a forma de um erro médico, às vezes sob a forma de um acidente, às vezes na forma da velhice e o esgotamente natural da força vital. Yama se expressa também sob a forma de viruses, bactérias e doenças.

Ele é a deidade do tempo, o que coloca o ponto final nos organismos quando é se esgota o alento vital e chega a hora da reabsorção. As pessoas dadas a levar uma vida dentro do dharma recebem felicidade da parte de Yama. Aqueles que agem contra o dharma, recebem sofrimento e aflição.

Ego, raiva e desejo

Mais adiante no diálogo, a partir do sétimo verso, Sanatsujāta faz ao rei uma série de recomendações para neutralizar as imperfeições do carácter, o que lhe permitirá, uma vez tranquilizada a mente, compreender que Ātma não morre.

Notadamente, recomenda ao rei considerar a raiva, krodhaḥ, como inimiga, pois esse tipo de emoção destrutiva é um obstáculo no processo do autoconhecimento

O ego, ahaṅkāra, sofre as privações, as mudanças, e o senso de incompletude, mas também tem a capacidade de obter conhecimento e correr atrás desse desejo especial que é a libertação. Quanto mais conhecemos, mais expostos estamos aos desejos.

Os desejos nascem do ego, que acredita poder resolver os problemas de não aceitação e desconforto consigo próprio, apenas satisfazendo-os.

A questão é que isso é como você buscar algo que você perdeu na esquina, dentro da sua casa, porque na casa tem luz e na rua não. Perambular buscando a mais variadas formas de satisfazer os desejos não nos leva a lugar algum.

Para preencher kāmaḥ, os desejos, nos esforçamos. Quando os desejos não são preenchidos surgem a frustração, o desapontamento, a agressividade e a raiva. Todas essas são formas de krodhaḥ.

Para que a raiva exploda, é necessária uma situação externa que favoreça isso. Quando nos confundimos em relação aos valores e objetivos, corremos o risco de atropelar o dharma.

Saṁsāra e renascimento

O ahamkāra se ocupa em diversos afazeres, iludido. Quando ficamos à mercê de emoções como a raiva, vivemos, morremos e renascemos incessantemente, sem aprender.

Após uma vida em algum outro mundo eventual, retornamos intactos para esta, nascemos chorando e tudo continua como antes. As circunstâncias mudam levemente, mas as condições básicas continuam as mesmas.

Repetimos novamente o que já tínhamos feito antes. Continuamos desejando objetos, que só mudam de tamanho conforme crescemos. Após cada morte, novamente o ciclo se repete.

Nessas condições, dizermos que vamos de nascimento em nascimento é exatamente o mesmo que dizermos que vamos de morte em morte. Isso é o saṁsāra.

Havendo conseguido um novo corpo para fruir os karmas, havendo nascido novamente, recebemos uma educação e nos preparamos para viver novamente na sociedade. Para que? Para tentar satisfazer os desejos e continuarmos sofrendo quando não os realizamos?

Os desejos nascem dos frutos das ações e, por sua vez, alimentam novas ações que produzem novos frutos que reforçam esses desejos. Assim, ficamos presos à roda do saṁsāra.

Para sermos capazes de romper esse círculo vicioso, precisamos nos separar do sofrimento. Esse é um processo chamado duḥkhasaṁyogaḥ.

A ilusão nubla a visão

Mohanam designa aquilo que causa uma ilusão, que nos mantém numa ilusão. Os sentidos não obrigam ninguém a fazer nada. Eles apenas reportam o que vêm.

O fascínio que a mente sente pelos objetos não deriva dos sentidos, mas faz parte da própria estrutura da mente. Moha é a incapacidade de enxergar através da subjetividade ou da névoa do próprio ego.

A única forma de perceber essa névoa é contrastando-a com a clareza de visão. Para realizar essa tarefa, a faculdade chamada buddhi, a inteligência, é muito importante.

Dessa forma, cultivando o discernimento, a distração, o erro e a ilusão, desaparecem. Ātma não se torna um objeto de conhecimento, pois já é o sujeito que aprecia os objetos.

O termo mithyārtha, por outro lado, designa algo que não tem valor, como a concha que acreditamos ser uma moeda de prata, ou a corda que acreditamos ser uma serpente.

No caso da concha e a moeda, o valor subjetivo está na mente de quem olha, não no objeto que é visto. Igualmente, no exemplo da corda e a serpente, o medo nasce da percepção errada, ele não está no objeto.

Discernimento é a solução

Uma calma meditação sobre objetos adequados, que criem impressões sensoriais harmoniosas, não deixa espaço para as distrações.

Dessa forma, a consciência fica blindada contra emoções indesejáveis, como o desejo, a ira ou a raiva. Uma pessoa com discernimento, capaz de enxergar e agir com cuidado, desejosa de mokṣa, sabe que a satisfação está centrada no Ser.

Desapego verdadeiro é discernir o que tem e o que não tem valor para nós, e ser capaz de abrirmos mão daquilo que identificamos como não tendo valor. Uma vez firmemente estabilizados no desapego, não mais corremos atrás das coisas pelo que elas não são.

Não nos iludimos com projeções nem buscamos nos objetos valores que não sejam inerentes a eles. Diz o menino sábio que o homem que se torna escravo dos seus desejos é destruído por esse tipo de equivocação. No entanto, aquele que consegue renunciar a esse apego, pode certamente dispersar sua influência.

O corpo não é Ātma

O corpo recebe uma série de nomes em sânscrito, como deha, śarīra e outros. Esses nomes não são muito abonadores: descrevem a fragilidade da condição encarnada.

Śarīra, por exemplo, significa “aquilo que está facilmente sujeito à desintegração”. Estes corpos foram dados para nós, para que os usemos por um determinado tempo.

Sanatsujāta procura explicar para o rei cego que é preciso ter claro o porquê do corpo. O corpo não é Ātma. O corpo não é consciente por natureza. Nem sequer tem uma mente dele.

Ele é, essencialmente, um objeto, percebido pela própria mente. Porém, ao mesmo tempo, ter um corpo é uma imensa bênção.

O tema é que não precisamos acreditar sermos só o corpo, ou sermos tão bons quanto o nosso corpo é bom. O corpo está sujeito à morte.

Ātma, não havendo nascido, não pode ser tocado pela morte do corpo físico. Às vezes, nos ocupamos demais em cuidar do corpo, da pele, do cabelo, das unhas, e ficamos sem tempo para cuidar de nós mesmos.

Muitas vezes, dedicamos tempo demais a dar cuidados obsessivos e desnecessários ao corpo. É incrível como alguém pode dedicar-se somente a fazer ginástica pela vida inteira. Nascemos para fazer algo mais do nobre do que só cuidar do corpo: imagine um malhador tornando-se um jñāni.

Ele tem a capacidade de se concentrar, portanto o potencial está aí. O problema é que nem sempre há disposição para o estudo de si mesmo.

O corpo é atraente para Yama, assim como a grama atrai as cabras. Yama é como uma cabra, que se sente atraída pelo cheiro da palha. Para a cabra, não faz a menor diferença se a palha tem a forma de um tigre: ela é só palha mesmo.

Este corpo não deve ser tomado por Ātma, pois senão estaremos tornando as nossas vidas um erro completo. Seremos um erro, do início ao fim. Às vezes, os mais entusiastas neste tipo de situação são os mais equivocados.

Afeição, tristeza e saudades

Por outro lado, é perfeitamente natural que, defrontados com a perda de um ser querido, sintamos tristeza ou nos deixemos levar às lágrimas pelas saudades.

Não estamos propondo, nesta reflexão, que seja necessário reprimir emoções desse tipo nem afirmando que elas não irão aparecer quando defrontados com este tipo de experiência.

Tampouco estamos dizendo que, na hora de dar adeus a esta vida, iremos fazer isso sem nenhuma vacilação nem medo. O autoconhecimento não é uma vacina contra estes sentimentos, nem pretende ser. Nem resolve nenhum outro problema prático, aliás.

A virtude desta visão, se há uma, é que, ao mesmo tempo em que nos liberta das diversas fontes de sofrimento, nos permite integrar uma emocionalidade mais profunda e comprometida com a vida.

A única diferença é que, ao invés de ficarmos à mercê das emoções como se fóssemos uma casca de noz num mar tormentoso, percebemos que as emoções indesejáveis, que nos levam ao sofrimento e aos extremos da tristeza, não ficam muito tempo conosco. O mesmo vale para a raiva, a ira e os demais sentimentos destrutivos que Sanatsujāta lista no diálogo com o rei.

Aliás, esse tema do quanto as emoções indesejáveis ficam conosco é um bom termômetro para medirmos como está o nosso processo de crescimento interior e maturidade emocional.

Vivendo esses sentimentos de maneira íntegra, e constatando que no movimento pendular das emoções, não ficamos demasiado tempo do lado da tristeza, do medo ou da raiva, saberemos que estamos no bom caminho.

A morte da morte

O último verso em que Sanatsujāta aborda o presente tema é este: “sabendo que a morte surge desta maneira, aquele que confia no conhecimento, não guarda medo dela.

De fato, assim como o corpo é destruído sob a influência da morte, a própria morte é destruída quando fica sob a influência do conhecimento”.

Cientes de que esta não pode ser a nossa natureza, de que não devemos ser apenas essas mudanças, de que não estamos limitados pelas limitações do corpo, que tampouco estamos limitados pelo tempo, ficamos tranqüilos e em paz.

Se conhecermos a nós mesmos, percebemos que não há nada a temer. Não há nada a rejeitar nem a temer, pois não existe nada que não seja o Ser.

No entanto, o medo é impossível de se evitar quando há confusão sobre quem somos. Aquele que se conhece como Ser Ilimitado elimina todas as fontes de medo. Havendo conseguido o conhecimento, destruíndo a confusão, que é a própria morte, o sábio reposa em paz.

Somos o conhecedor, somos o conhecido. Somos o tema de conhecimento. Não precisamos fazer um esforço para lembrar quem somos. Quando a ignorância se esvai, percebemos que a natureza de Ātma é consciência, calma e plenitude.

Medo da morte, bye bye

Quando não há mais ignorância em relação à vida e à morte, a confusão desaparece. Ninguém, enquanto manifestação, escapa da influência da morte física. Isso é um fato. Mas também é fato que Ātma não é esse tipo de manifestação.

Ātma está em todas as manifestações, mas não é nenhuma delas. Quando a confusão desaparece, o tempo e o espaço, bem como todos os eventos que neles têm lugar, revelam-se como objetos para a nossa apreciação. A morte morre quando confrontada com o conhecimento.

Bubhūṣan é uma palavra desiderativa, que indica algo que se deseja alcançar. Esta palavra é similar a mumukṣa, que designa o desejo de ser livre. Quando ficamos com sono, qual é a solução? Dormir. O desejo de dormir, consequentemente, acaba subjugando todos os demais.

Da mesma forma, para o jigñasu, para aquele que busca o conhecimento, mokṣa é o desejo que se sobrepõe a todos os demais. No caso, desejar ter clareza, ter um intelecto iluminado.

Buddhi pode se tornar aquilo que desejamos que ele se torne. Então, havendo preparado a mente e compreendido que a morte só é para o corpo e não atinge nunca o Ser, se a morte é apenas um tigre de madeira do qual não precisamos fugir, como diz o menino ao rei, por que deveríamos ter medo dela.

॥ हरिः ॐ ॥

+ sobre a morte aqui
Aqui, uma aula de Swāmi Tadātmānanda
sobre o simbolismo na Bhagavadgītā

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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7 respostas para “O Yoga e a Morte”

  1. Lindo texto.

    Foi muito significativo, especial.

    Obrigado pelo convite à reflexão.

  2. Parabéns pelo texto! Muito inspirador.
    Amei a reflexão e não pretendo parar por aí!
    Muito obrigada mesmo! Namaste!

  3. Li, reli. Imprimi. Li e reli… e o que dizer… muito obrigado!!
    Namastê!!

  4. Obrigado por esse texto tao bonito e instrutivo.
    Vou lê-lo mais vezes. Namastê !

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