Cakras e Kośas, Conheça

Prána, corpo e transformação

Os praticantes e professores de Yoga sempre ouvimos dizer (e repetimos) que o Yoga é um caminho para a transformação e, que ao longo das práticas, acontece uma série de mudanças nas nossas vidas que transformam a visão que temos do mundo. Porém, em alguns casos, os anos passam, as práticas continuam, mas a pessoa fica com a sensação de que alguns problemas de fundo ainda estão lá, silenciosos, secretos e imutáveis.

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Os praticantes e professores de Yoga sempre ouvimos dizer (e repetimos) que o Yoga é um caminho para a auto-transformação e, que ao longo das práticas, acontece uma série de mudanças nas nossas vidas que transformam a visão que temos do mundo.

Porém, em alguns casos, os anos passam, as práticas continuam, mas a pessoa fica com a sensação de que alguns problemas de fundo ainda estão lá, silenciosos, secretos e imutáveis.

Como podemos de fato alcançar essa transformação? Como podemos superar os obstáculos que nós mesmos colocamos no nosso caminho? Será que de fato entendemos a complexidade de aquilo que alegremente decidimos eliminar de nossas vidas? Será que de fato entendemos como somos e como funcionamos?

Para mudar alguma coisa, é preciso primeiramente modificar a energia que criou aquilo que pretendemos melhorar. É assim que funciona a prática de Yoga, desde os aspectos mais densos até os mais sutis. Para podermos realizar mudanças positivas em qualquer nível do complexo corpo-mente que somos, devemos, antes de mais nada, compreender a forma em que trabalha a energia que está por trás da realidade que somos. Em sânscrito, essa energia recebe o nome de prána. Prána significa energia primordial, mas pode igualmente traduzir-se como vitalidade ou alento vital, embora estas duas últimas significações sejam bastante limitadas.

Embora o conceito de prána seja citado com freqüência nos textos e práticas de Yoga, suas diferentes manifestações nem sempre recebem a atenção devida. É por isso que a ciência do prána, chamada Swara Yoga, é ao mesmo tempo vasta e profunda, mas muito pouco compreendida ou praticada. Este artigo tem a intenção de traçar o mapa dessa rede sutil na nossa experiência humana e apontar para algumas soluções práticas para remover os obstáculos de que falamos acima.

Há uma estória vêdica, presente em várias Upanishads, que fala sobre o prána. Essa estória é assim: as cinco principais faculdades do corpo: mente, prána, fala, audição e visão, discutiam sobre qual delas seria a melhor e mais importante. Isso reflete a situação de conflito do homem que não consegue integrar suas forças em si mesmo. Para resolver a charada, as faculdades humanas decidiram que cada uma delas abandonaria o corpo alternadamente, para que ficasse claro qual seria a ausência mais sentida.

Primeiramente, a fala abandonou o corpo. Este, mudo, continuou existindo. Depois saiu a visão, mas o corpo, cego, continuou vivendo. A continuação, a audição deixou o corpo, que continuou vivendo, embora mudo. Quando a mente saiu, o corpo continuou existindo, insonsciente. Finalmente, o prána abandonou o corpo, mas no mesmo instante o corpo começou a morrer e as outras faculdades começaram a perder vitalidade. Então, apressaram-se em procurar o prána, pedindo-lhe que voltasse. Obviamente, o prána venceu a discussão.

O prána energiza todas os órgãos de ação e todos os órgãos dos sentidos. Moral da estória: se quisermos ter algum tipo de controle sobre nossos órgãos e funções vitais, devemos primeiramente entender como funciona e aprender a dominar o prána.

O prána possui vários níveis de significados, que vão desde a respiraçao pulmonar à própria consciência. Não é apenas a energia vital: no plano humano, é toda e qualquer forma de energia manifestada, seja em nível mental, vital ou corpôreo.

Porém, o universo inteiro é uma manifestação do prána, que é a fonte criativa original. No plano cósmico, existem dois aspectos básicos do prána. O primeiro é o aspecto não manifestado, chamado Purusha, ou Pura Consciência. O segundo é o aspecto da maniestação criativa, chamada Prakriti, que é a própria força da natureza.

O ser humano não é, como diz Georg Feuerstein, apenas um tubo digestivo ambulante. O Yoga nos ensina que estamos feitos de cinco camadas concêntricas, chamadas koshas:
1) Annamaya kosha ou camada física, feita de alimento (anna),
2) Pranamaya kosha ou camada de energia, que inclui os cinco pránas, e o sistema dos chakras,
3) Manomaya kosha ou camada mental, que inclui os cinco tipos de impressões sensoriais,
4) Vijñanamaya kosha ou camada de razão, que inclui as atividades intelectuais e intuicionais, e
5) Anandamaya kosha ou camada do inconsciente, que está conectada ao corpo causal.

Destes cinco, o pranamaya kosha é a esfera da vitalidade. Esta camada é a interface entre o corpo físico e os níveis mais profundos do ser. O pranamaya kosha está configurado por nossos instintos de sobrevivência, preservação da espécie e expressão, e está conectado com os órgaõs de ação: fala, preensão, locomoção, reprodução e excreção. Igualmente, esta camada de energia vital é a sede dos medos, os desejos e os condicionamentos subconscientes.

Um pranamaya kosha saudável e forte é imprescindível para se ter sucesso no caminho do Yoga. A força do yogi não deriva de nenhum tipo de poder pessoal, mas da entrega à energia do Divino. Na mitologia hindu, essa forma de prána superior é simbolizada pelo deus-mono, Hanuman, filho de Vayu, o deus do vento.

Hanuman entrega sua existência ao serviço do Divino, personificado em Sita e Rama. Ele é tão poderoso que domina os siddhis laghima e mahima, ou os poderes de tornar-se infinitamente pequeno ou infinitamente grande, é capaz de derrotar os mais poderosos inimigos e realiza proezas milagrosas.

Com toda sua vitalidade, Hanuman é a encarnação da boa vontade, da curiosidade e da força física, que subordina todos seus poderes e sentidos a uma aspiração mais elevada.

Uma análise profunda do Ramayana revela a visão yogika deste épico. As principais personagens, Sita e Rama, representam respectivamente Paramatman e Jivatman, ou a alma universal e a alma individual.

A princesa Sita é seqüestrada pelo demônio Ravana, que representa o erro, o egoísmo, a falta de visão e o apego. As dez cabeças do demônio simbolizam os cinco órgãos de ação e os cinco sentidos que controlam a existência o homem escravo de seus próprios condicionamentos.

Sita é levada para o “mundo inferior” (Lanka) e mantida presa na floresta Ashokavana, que representa a experiência do mundo sensorial. Lá, ela sonha com Rama e mantém sua mente, sua força interior e sua razão concentradas no amado.

Não obstante, Rama não consegue resgatar a princesa sem a ajuda de Hanuman, que é a própria encarnação da força vital. Assim, estabelece-se a união daquela que foi seqüestrada pelo ego (Jivatmana) com a alma universal, Paramatman, que é em última análise, a meta do Yoga.

Os cinco pranas

O pranamaya kosha está composto de cinco formas diferentes que a energia vital assume, de acordo com seu movimento e direção no interior do corpo. Esse é um tópico importante, não somente para o Yoga, mas igualmente para o Ayurveda, a ciência indiana da saúde e da longevidade. Essas cinco formas da força vital recebem o nome de vayus ou pranas. Elas são:

Prana
Prana significa literalmente ?força que se move para frente?. Regula todos os processos de absorção: o movimento inspiratório, a assimilação de alimentos sólidos e líquidos e a recepção das impressões sensoriais. É centrípeto por natureza e tem como finalidade colocar as coisas em movimento. Localiza-se na parte superior do tórax, entre a garganta e o umbigo.

Apana
Apana significa literalmente ?força que se move para fora?. Controla todos os processos de excreção (sêmen, urina e fezes) e eliminação (eliminação de dióxido de carbono na respiração, menstruação e nascimento). Por causa dessa função de expulsão, o apana é responsável pelo bom funcionamento do sistema imunológico. No nível sutil, regula a expulsão das experiências negativas, emocionais e mentais. Movimenta-se centrifugamente, para baixo e para fora e está localizado na parte inferior do abdômen.

Udana
Udana significa literalmente ?força que se move para cima?. Governa o crescimento do corpo, a habilidade de ficar em pé, falar, esforçar-se e entusiasmar-se. Regula a distribuição da energia vital na região do pescoço. No plano sutil, regula os movimentos de transformação positiva e evolução da nossa existência.

Samana
Samana significa literalmente ?força que equilibra?. Movimenta-se circularmente, da periferia para o centro, na região média do abdômen, entre prana e apana. Auxilia os processos digestivos em todos os níveis. Trabalha o trato gastrointestinal na digestão do alimento, os pulmões na absorção do oxigênio e a mente na assimilação de experiências sensoriais, emocionais ou mentais.

Vyana
Vyana significa literalmente ?força que se move para fora?. Movimenta-se do centro para a periferia, entre o tronco e os membros. Controla todos os níveis de circulação: movimenta os nutrientes no corpo, os sentimentos e pensamentos no psiquismo, a administração da força de vontade e a coordenação dos outros quatro pranas.

Resumindo, podemos dizer que o prana regula a absorção de substâncias, o samana regula sua digestão, o vyana a circulação, o udana a liberação da energia positiva dessas substâncias, e o apana a eliminação dos resíduos que elas possam deixar.

prana – absorção
samana – digestão
vyana – circulação
udana – liberação da energia positiva
apana – eliminação

Para terminar de entender isto, pense no corpo como se fosse uma mâquina: o prana absorve o combustível, o samana transforma o combustível em energia, o vyana faz circular essa energia onde a mâquina estiver trabalhando e o apana libera os detritos, enquanto o udana administra a energia positiva criada no processo e determina o trabalho que a máquina está capacitada para fazer.

A chave para a saúde e o bem-estar é manter os cinco pranas em harmonia. Quando um deles está em desequilíbirio, os outros tendem a entrar em desequilíbrio também, já que estão todos interligados. De modo geral, prana e udana trabalham juntos, opondo-se a apana como forças de assimilação e energização que se opõem à força de eliminação. Da mesma forma, vyana e samana são opostos como forças de expansão e contração.

Como se cria o corpo físico a partir do prana?

O prana esculpe a massa corpórea em forma de membros e órgaõs. Realiza essa tarefa através dos canais da força vital, chamados nadis, que operam sobre tecidos e órgaõs. O prana vayu cria as aberturas e canais desde a cabeça ao coração, os dois olhos, os dois ouvidos, as duas narinas e a boca.

O udana auxilia ao criar as aberturas na parte superior do corpo e as cordas vocais. O apana cria as aberturas na parte inferior do corpo, dos sistemas gênito-urinario e excretor. O samana cria as aberturas na parte média do corpo, do sistema digestivo, que estão centradas na região do umbigo.

Abre os canais dos intestinos e dos órgãos, como o fígado e o pâncreas. O vyana cria os canais que alcançam as partes periféricas do corpo, como pernas e braços. Cria igualmente os tecidos, músculos, articulações e ossos.

No entanto, o prana não se manifesta unicamente no nível físico. O umbigo é o centro vital mais importante do corpo físico. O coração é o centro da camada energética (pranamaya kosha). A cabeça é o centro vital mais importante do manomaya kosha.

A força vital e a mente

A energia da mente deriva igualmente da força vital: o prana governa a assimilação das impressões sensoriais. O samana regula a asimilação mental. O vyana coordena a circulaçõ mental.

O apana se encarrega de eliminar os pensamentos negativos e as emoções tóxicas. O udana coordena os movimentos positivos da força mental, o entusisasmo e a capacidade de realização.

No nível psíquico, o prana regula nossa receptividade às fontes positivas de nutrição, sentimentos e conhecimento através da mente e dos órgaõs dos sentidos. Quando o prana está fora de equilíbrio, pode provocar desejos insaciáveis, deixando a pessoa fora de foco em relação a si própria.

Nesse mesmo níveo, o apana regula nossa habilidade de lidar com pensamentos e sentimentos negativos. Ao entrar em desequilíbrio, provoca depressão e incapacidade de lidar com experiências negativas, tornado a pessoa fraca e dominada pelo medo.

O samana outorga contentamento e equilíbrio à mente. Fora de harmonia, o samana pode dar lugar a apego excessivo e avareza, tanto em relação a coisas materiais como no nível dos relacionamentos.

O vyana harmonizado se manifesta como movimento livre e independente da mente. Quando está fora de equilíbrio, pode produzir tendência ao isolamento, aversão, alienação ou incapacidade de permanecer conectado consigo próprio ou com os demais.

O udana outorga entusiasmo e alegria, e nos ajuda a despertar nossos potenciais mais elevados e criativos. O seu aspecto negativo pode manifestar-se como orgulho e arrogência, podendo provocar devaneios ou a incapacidade de manter-se centrado.

Aspectos psíquicos dos pranas

Os pranas têm muitas aplicações nas práticas de Yoga. Em nível psíquico, o samana regula o espaço dentro do coração (hridyakasha), onde a essencia do Ser, o Atman, se manifesta como um fogo de sete chamas, governando o espaço interno (antariksha). Sem a paz e o equilíbro de samana não poderemos nos voltar para o âmago do nosso ser, nem concentrarmos a mente.

O vyana regula o movimento da vitalidade através das narinas, mantendo-as saudáveis e em bom funcionamento. O apana nos protege das influências negativas que possam vir do exterior. O prana nos outorga motivação e foco para o desenvolvimento espiritual.

O udana regula o crescimento da nossa consciência, levando a mente, desperta, para o estado de sono e outros. O udana determina igualmente o movimento da força psíquica ao longo do canal central do corpo sutil, chamado sushumna nadi. A consciência se movimenta junto com o udana, que é o mais importante dos vayus para o desenvolvimento psíquico no Yoga.

Na medida em que nossas práticas evoluírem, os aspectos mais sutis destes cinco pranas começarão e despertar. Isto pode provocar vários movimentos inusuais da energia no corpo ou na mente, incluindo-se aqui a experiência espontânea de certos movimentos energéticos chamados kriyas.

Nesse sentido, poderemos perceber novas dimensões do campo consciência-energia (vyana sutil), uma sensação de imensa paz (sama sutil), um sentimento de leveza ou levitação (udana sutil), grande estabilidade (apana sutil) ou simplesmente muita vitalidade e sensibilidade aguçada (prana sutil).

Trabalhando com o pranayama

O método mais adequado que o Yoga nos ofereca para trabalhar com o prana é o pranayama, ou a tecnologia de respiração yogue. O Hatha Yoga tradicional dá muita ênfase à purificação dos elementos do corpo (bhuta shuddhi ou deha shuddhi) e à purificação da consciência (chitta shuddhi) como meios de auto-realização.

É por esta razão que o Yoga prescreve e recomenda uma dieta vegetariana, rica em alimentos que contenham muito prana e que tenham sido elaborados observando valores éticos como a veracidade e a não-violência. O motivo que está por trás dessa prescrição alimentar é que, para um corpo-mente intoxicado, será muito mais difícil perceber os aspectos mais sutis da paisagem interior.

Para podermos perceber a dimensão interior, prescrevem-se técnicas de purificação, chamadas satkarmas, seguidas de exercícios para restaurar o equilíbrio sutil através da prática de respiratórios yogues, dentre os quais ocupa lugar de destaque o chamado nadi shodhana, ou respiração alternada.

Este exercício auxilia na harmonização das forças solar e lunar. A força solar, chamada pingala nadi, é de polaridade positiva, ativa, enquanto que a força lunar tem polaridade negativa e passiva. A prática regular desse respiratório é o método mais importante para manter nossos pranas em equilíbrio.

Mantra e meditação

As práticas respiratórias lidam com o pranamaya kosha. No entanto, os pranas podem ser trabalhados diretamente no plano mental (manomaya kosha). Cor e som são formas muito eficientes de dirigir a energia dentro da mente. A melhor técnica é o mantra, ou a emissão de fórmulas sonoras sagradas.

A mais conhecida e ao mesmo tempo a mais eficiente dessas fórmulas é o mantra Om, que gera vibrações (em sânscrito, nada) capazes de direcionar a força vital para o subconsciente.

A própria meditação, criando espaço na consciência, serve para dirigir mais prana para ela. Quando a mente descansa em silêncio e receptividade, uma nova força auto-consciente passa a manifestar-se. Essa força é agente das transformações que todo praticante de Yoga aspira a realizar.

Na linguagem simbólica dos Vedas, o prana é o sol que traz vida e luz para todos, e que mora no coração de cada, assim como a Pura Consciência está presente em todas as formas viventes. O prana nos vivifica e anima, e nos permite agir. Não é o ego, tacannho e mequetrefe, buscando atribuir os efeitos do prana a si mesmo, que realiza alguma coisa.

Devemos aprender a ficarmos abertos e receber essa dimensão maior do complexo energia-consciência para podermos transformá-la em experiência e açao em nossas vidas. Essa é uma das mais altas aspirações e um segredos melhor guardados do Yoga.


Os trechos deste artigo que tratam dos cinco pranas foram baseados no texto Secrets of the five pranas (Secretos dos cinco pranas), de David Frawley.

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
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4 respostas para “Prána, corpo e transformação”

  1. Quero apenas fazer um registro que será referência – especialmente para eu mesmo – futura. É que acabei de começar a praticar o Yoga. Estou com apenas duas aulas, que fiz seguidamente num mesmo dia, em duas horas. É impressionante registrar como provocaram mudanças em minha vida como um raio, impressionantemente perceptíveis pela minha sensibilidade. Futuramente estarei neste espaço para dimensionar a tsunami de profundas mudanças que deverão ocorrer quando estiver na centésima aula. Se for proporcional e relativo, nem dá para imaginar o avanço!

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