Conheça, Vedānta

A Unidade com Deus

Originário da parte final dos Vedas (as escrituras sagradas indianas), o Vedanta é uma ciência espiritual que busca identificar-se com o todo universal. Um de seus grandes conhecedores, Swami Dayananda Saraswati, explica aqui a importância do Vedanta no mundo atual.

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A Unidade com Deus. Entrevista concedida a Nelson Liano Jr.

Planeta – Gostaria que o senhor explicasse sinteticamente o que é Vedānta.

Swāmi Dayānanda – Vedānta é uma palavra que significa um certo ensinamento, um ensinamento em que o indivíduo não é separado de Deus. Existe uma diferença entre o indivíduo e Deus, mas essa diferença é aparente, o que quer dizer que é como se fosse real.

A realidade dos dois é uma única e plena realidade, e esta é ensinada pelo que chamamos de ensinamento Vedānta. A realidade espiritual, a essência de todos, é a totalidade, a única realidade – Isto é Vedānta.

Planeta – Como esse conhecimento pode ajudar as pessoas? Ele é adequado apenas a quem conhece a cultura da Índia?

Swāmi Dayānanda – O Vedānta fala sobre o problema da humanidade e aconteceu de ser primeiramente ensinado na Índia. Porém, não é indiano, mas universal, assim como a matemática.

Ser a totalidade é uma realidade de toda a humanidade, não apenas dos americanos ou dos brasileiros, por exemplo. Essa realidade acaba com o problema da humanidade, que é o de ser livre de ser pequeno, e isso é ensinado em Vedānta: você é o todo, você não é pequeno.

Essa é uma importante realidade. Eu não sei se toda a humanidade vai entender essa realidade ou não, mas é este o objetivo humano.

Planeta – Gandhi escreveu um artigo criticando certos rituais primitivos descritos nos Vedas que podem ser considerados prejudiciais. Como o ritual de sati, por exemplo, em que a mulher se imolava junto com o corpo do marido falecido em uma fogueira. Qual a sua interpretação disso?

Swāmi Dayānanda – Sati não é um ritual, mas um costume praticado na época da invasão mughal, no século 13. Os muçulmanos têm a autorização das suas escrituras para casar com quatro esposas ao mesmo tempo, podendo abandonar qualquer esposa e substituí-la por outra, inclusive viúvas.

Então, os soldados eram mortos na guerra e as suas esposas entravam no fogo, pois não queriam cair nas mãos dos muçulmanos. Alguns costumes continuaram por muito tempo, e não são costumes que existem em todo o país.

Os rituais dos Vedas, na verdade, são simples, e são principalmente rituais de fogo. Há também os rituais puránicos (das Purāṇas), que são sobretudo pūjās (rituais devocionais a deidades).

Os outros rituais são saṁskāras (de iniciação às várias etapas da vida). Eles constituem uma forma religiosa de vida que faz com que uma pessoa possa se tornar inteira, e aí, então, descobrir que é o todo.

E essa forma de viver está baseada nos Vedas e nos livros que apóiam os Vedas (Upavedas). Em algum momento existiram várias tribos na Índia que tinham seus rituais primitivos, os quais eram também aceitos pela corrente principal – a visão dos Vedas -, pois tudo é manifestação de Deus.

Planeta – A Índia tem uma das culturas espiritualistas mais antigas do planeta, que foi preservada exatamente pelo estudo dos Vedas. Apesar dessa cultura religiosa ser considerada evoluída, nos mais recentes séculos o seu país foi dominado sucessivamente por outros povos, como os ingleses. Qual é o motivo desse paradoxo, entre uma evolução espiritual e uma evolução política?

Swāmi Dayānanda – A tradição espiritual sempre sofre, porque geralmente diz respeito a pessoas de natureza não-agressiva. As pessoas não-agressivas sofrem muito com as pessoas agressivas. São necessários séculos até elas conseguirem se reafirmar. Em todo o mundo é a mesma coisa: grupos espiritualistas sofrem nas mãos de pessoas agressivas.

Planeta ? Qual é a relação do Vedānta com as religiões? O ideal para o seu aprendizado adequado é tornar-se hindu?

Swāmi Dayānanda – Não é necessário. O Vedānta é para uma pessoa religiosa, que é aquela que se relaciona com o Senhor, Deus. Uma tradição espiritual que não possui um Deus não é uma tradição espiritual.

Portanto, não vai funcionar. Da mesma maneira que uma onda está conectada com o oceano, o indivíduo está conectado com o Senhor.

Se a onda tem um problema, ela tem de resolvê-lo com o oceano; na aceitação do oceano, ela alcança um relaxamento. Somente este indivíduo pode ser iluminado.

Assim, uma vida religiosa é muito importante para o buscador. Uma vida religiosa, porém, não quer dizer uma forma especial de religião. O relacionamento com o Senhor é religião – e isto é muito importante.

Portanto, se o indivíduo é um cristão, tem uma atitude de prece, relaciona-se com o Senhor, compreende quem é o Senhor, ele tem uma vida ‘vedântica’, e isso conduz à verdade de que ‘sou o Todo’.

A onda deve saber que é o oceano, e primeiramente tem de se relacionar com o oceano de forma apropriada. Se ela tem raiva do oceano, jamais poderá se tornar o oceano. Na raiva, o ego está manifesto. E na raiva você tem de relaxar.

E para relaxar você tem que deixar o oceano estar mais na sua vida do que você está. E, quando isso é compreendido adequadamente, as contas com o Senhor estão acertadas, a pessoa pode se dizer espiritual.

Então, a onda pode descobrir que é água, que é todas as ondas também. A água é a verdade. Assim também aqui, entre Deus e você. O Vedānta não é oposto a uma vida religiosa, mas não defende um Deus que é julgador, pois isso não vai ajudar as pessoas.

Tampouco um Deus que está dividindo seu poder com um Satã poderá ajudá-las. Satã e Deus – essa visão não existe. Deus é tudo, com quem você se relaciona e acerta as suas contas. E isso é algo muito importante.

Planeta – Aqui no Brasil existem mais de 15 milhões de pessoas que seguem religiões espiritualistas, as quais trabalham com espíritos desencarnados para fazer o bem. Há na Índia alguma religião nos mesmos moldes? Os Vedas fazem referência a isso?

Swāmi Dayānanda – Espíritos possuindo (outros) e falando com os que estão em contato com eles existiram sempre, em todo o mundo. Na Índia, é lógico, ainda existe muito disso, mas não é muito encorajado.

Tentamos instruir os espíritos para que continuem suas vidas: que continuem com seu karma e nasçam de novo, não ficando pendurados por aqui.

Um espírito é um jīva, um indivíduo que abandonou o corpo denso e tem um corpo sutil, que parece com o corpo denso, exatamente como acontece no sonho, e é chamado de pretaśarīra.

Pretaśarīra é uma situação ruim para alma, pois ela não tem o corpo físico, uma vez esgotado o prarabdha (aquilo que cada um tem que viver), nem está continuando de acordo com seu karma, tampouco está presa.

Fala-se que temos de salvar esses espíritos presos nessas pretaśarīras e, então, fazemos rituais como shraddha e darpana (para os falecidos), a fim de ajudá-los.

Planeta – Nos anos 60 e 70, foi divulgado o trabalho de vários gurus. Alguns trouxeram benefícios para o Ocidente e outros não. De qualquer maneira, a figura do guru ficou muito desgastada neste lado do mundo. Como poderíamos saber se eles são verdadeiros ou não?

Swāmi Dayānanda – É assim que acontece quando a tradição não é organizada. Não existe uma pessoa chamada guru. Guru é aquele para quem se olha como um mestre/professor, o qual é geralmente reconhecido na Índia como aquele que sabe lidar bem com os shástras (as escrituras).

Ele deve ser um śrotrīya – uma pessoa bem informada sobre shástras e o ensinamento que envolve linguagem, gramática e compromisso com a espiritualidade, tendo geralmente uma vida comprometida com isso.

De qualquer maneira, mesmo na Índia existem seguidores para qualquer tipo de homem de Deus. Alguns gurus estão, eles mesmos, iludidos. Às vezes, porém, eles iludem os outros, pois sabem o que estão fazendo e sabem que estão enganando.

Na Índia, podem não conseguir tantos seguidores, e saem do país. Alguns, que são populares lá, não fazem qualquer mal, e inspiram as pessoas. Outros vem para cá na esperança de criar algum tipo de reinado.

Assim, não beneficiam as pessoas e nem eles mesmos, apesar de serem, de alguma maneira, beneficiados financeiramente. Da mesma forma, na América do Norte, os evangelistas da TV são muitos, e cada um deles tem uma igreja.

Considero um verdadeiro roubo o que está acontecendo: juntam muito dinheiro, dizem que estão fazendo isto e aquilo, mas é tudo falso.

Eles foram para o meu país. Se eles juntam US$ 100 para distribuir, distribuem US$ 1, e esta pessoa dá 60 centavos e fica com 40.

Isso não é uma coisa saudável nem para o cristianismo nem para qualquer pessoa que seja um cristão de fé. Sempre existirão pessoas assim, que nada têm a ver com a nossa tradição.

Planeta – O senhor costuma falar sobre o aspecto mãe de Deus. Particularmente, eu acho que, quando as pessoas começarem a prestar mais atenção a esse aspecto feminino de Deus, talvez algumas guerras cessem, e a Humanidade comece a evoluir. Fale um pouco sobre esse aspecto.

Swāmi Dayānanda – Na sua pergunta já está presente a resposta. Mãe quer dizer amor, afeto, carinho; e pai, cuidado, apoio. Juntos, eles constituem um ser humano completo.

Todo mundo possui os aspectos feminino e masculino, que têm de ser integrados. Em alguns, o masculino é mais forte, e em outros é o feminino.

Por isso, temos uma concepção de Deus na qual metade é masculina e a outra metade é feminina, o que é uma forma muito bonita de olhar para o Senhor. E devemos ensinar às pessoas sobre isso.

Planeta – Por quê nas tradições do Ocidente e do Oriente existem pessoas que têm de se afastar do mundo para ensinar às pessoas sobre o próprio mundo? O senhor, como renunciante, o que poderia dizer sobre isso?

Swāmi Dayānanda – É bom que haja pessoas assim, cujo compromisso único é dividir com os outros a mensagem. Elas são muito úteis. Assim foi feito com os padres católicos para carregarem a mensagem que estão convencidos que têm que levar às pessoas.

E a igreja continuou a fazer isso, espalhando-se por toda a parte. O cristianismo é, na verdade, o maior culto, pois, de certa forma, está centrado em uma pessoa exclusiva.

Mas, porque tem muitas pessoas, deixou de ser um culto. Tornou-se uma grande religião, pois existem pessoas compromissadas fazendo isso.

Tais pessoas devem falar sobre quem é Deus, o que é a vida, qual é meu relacionamento com esse Deus, como esse relacionamento vai ajudar… Eu ficarei sempre separado, afastado de Deus, com medo de castigo, ou resolverei essa separação – Existe uma mensagem nisso – é Vedanta.

Essa mensagem tem de chegar até as pessoas. Espero que, por fim, chegue, porque não há outra solução: a Humanidade tem de resolver esse problema pra sempre.

Essas religiões exclusivas são cultos, não ajudam as pessoas e só criam mais problemas. O cristianismo e as outras tradições têm de ser espirituais, têm de olhar o problema como um todo e chegar à solução.

A língua pode ser diferente, mas a mensagem tem de ser a mesma, porque a verdade não pode variar de pessoa para pessoa.

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Planeta – Agora, chegando ao ano 2000, os Vedas prevêem alguma mudança significativa da humanidade?

Swāmi Dayānanda – Os astrólogos devem falar alguma coisa ? a Índia tem uma grande tradição astrológica. Eu considero que é somente alguma coisa que alguém começou com relação ao número, ano 1000, ano 2000.

Qual é a santidade do número um? Nenhuma. Não faz sentido para mim essa transformação do ano 2000. Daqui a dois anos, estaremos em 2000 e você não será mais velho mil anos!

Você estará completando somente mais um aniversário, só isso. Só os computadores terão problemas. O que eu digo é que não fará diferença. As pessoas fazem diferença, não é o tempo que faz diferença para nós.

As mudanças ocorrem e, com toda essa rede da internet (e-mail, website…) ou as pessoas ficam loucas ou têm de se tornar sãs.

Planeta – O senhor não acredita numa transformação global? Só na transformação individual?

Swāmi Dayānanda – Não importa o que eu acredito, mas as pessoas que acreditam numa salvação global não tiveram sucesso de qualquer maneira.

Mesmo na Índia, nós acreditamos em avatares, nessas encarnações de Deus, como Krishna e Rama. Eles nada fizeram. Rāvaṇa (um demônio) foi morto por Rāma e outros, mas, mesmo assim, a humanidade continua a ser o que era antes.

E Kṛṣṇa  veio e destruiu algumas pessoas, mas isso não significa que ele resolveu o problema. A única coisa que permanece é o que Kṛṣṇa ensinou a Arjuna. Somente essa mensagem continua e é relevante.

E Kṛṣṇa disse isso claramente. Eu não acredito em messias e profetas que vieram e foram embora. Por causa deles e em nome deles, só existe mais problema, violência e agressão. Há tanta violência religiosa!

Se alguém converte o outro, é uma violência religiosa. E a violência vai chamar mais violência. Acho que esse conceito global, em si mesmo, atrai violência.

Qualquer pessoa que considera fazer uma transformação global atrai violência. Não existe mudança global. Pode-se levar a mensagem para o globo, mas isso é individual. Sem dizer que todas as pessoas teriam de mudar e ficar falando de uma ideia única.

Planeta – Qual é a principal mensagem que o senhor trouxe ao Brasil?

Swāmi Dayānanda – Nós sempre confiamos em alguém que merece nossa confiança, mas esquecemos que essa pessoa é um ser humano e não é infalível. Se alguém fica doente ou está com fome, é falível; se morre, é falível.

Então, quem é infalível? Dizemos que Deus é infalível, e depois o achamos falível, pois Ele não nos dá o que queremos. Não temos um lugar para depositar nossa confiança. Cada ser humano está buscando o infalível, e isso não é necessário.

Você tem de entender que o infalível é Deus. Sem entender Deus, somente fé não ajuda. É preciso entender que o tudo que existe é Deus, que tudo o que existe é Ordem, que tudo o que existe é dado, e o que é dado não está separado d’Aquele que dá.

Se entendo isso, minha compreensão do Infalível me faz relaxar. E também sou validado através disso. O Senhor torna-se meu validador. O terapeuta em que você confia o valida. Mas a validação do terapeuta é tão boa quanto a sua validação.

Você tem lá suas dúvidas em relação ao terapeuta e, portanto, a validação dele é muito limitada. A única pessoa que pode me validar é a única que eu jamais poderei invalidar, e este é o Infalível.

A minha própria consciência do Infalível me oferece um permanente terapeuta, que me valida sempre, pois eu não posso surpreender Ishvara (O Deus). O infalível não pode ser surpreendido por alguém.

Compreendendo Aquele-que-tudo-conhece, como pode haver surpresa por parte d’Ele em relação à minha ação ou conduta? Ele é o único que não pode ficar surpreso.

Se eu reconheço que ele não pode se surpreender, então eu sou compreendido sempre. O sentimento de não ser compreendido não existirá e essa será a base para o amor, porque não existe estranhamento, mas conexão. E, onde existe conexão, existe amor.

O Brasil é um país muito bonito. Um país de benção. Possui a melhor floresta do mundo, importante para a Mãe-Terra. Até podemos dizer que aqui é o centro do globo, por causa dessa floresta.

As pessoas não têm preconceitos, pois vieram de diferentes países e culturas. Todos se misturaram, sem qualquer pureza racial ? o que é, de certa maneira, saudável. Mas nessa miscigenação existe uma confusão de lar: o que é lar para mim? Como devo me ver?

Como africano, europeu, ou o quê? Isso pode causar problemas. Então, é necessário que as pessoas possam ir além e resolver o problema espiritualmente.

Essa cultura é ideal para o desenvolvimento espiritual. Não falo de revolução externa, mas de uma revolução interna, individual, quieta. No entanto, a crise individual é necessária para que qualquer mudança espiritual possa ocorrer.

Eu considero o ensinamento espiritual que meus alunos estão fazendo aqui muito importante na vida de brasileiros. E tem que ser na língua que eles sabem. Não adianta ser em sânscrito, pois as pessoas não o conhecem.

Sempre acredito que as pessoas são basicamente boas. Que somente existe uma história triste, não pessoas ruins. Existem ações erradas, e, se tomarem conta de si mesmas, as pessoas podem evitá-las.


॥ हरिः ॐ ॥

Extraído da edição de setembro de 1998 da revista Planeta.
Digitado por Cristiano Bezerra.

+ Ensinamentos de Swāmi Dayānanda aqui

॥ हरिः ॐ ॥

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