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Deus: acreditar ou compreender?

Tudo o que está aqui é Deus. Ninguém pode dizer 'eu acredito em Deus'. Deus não é algo sobre o qual você deve acreditar. Deus é para ser compreendido. A criação inteira é Deus. Não existe nada separado dele

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Realmente falando, o conhecimento é necessário para a criação acontecer. Tão necessário quanto a matéria, a causa material, que é o próprio Brahman. Precisamos também de causas secundárias.

Porque Deus criou o mundo? Será que foi por acaso? Tem muito conhecimento envolvido nesta criação. Desde a estrutura de uma folha à estrutura do átomo, cada palavra é só conhecimento. O plano fisiológico, anatômico, etc., são muito sofisticados e profundos. Mas tudo se resume ao conhecimento.

Tanto conhecimento está envolvido que este conhecimento precisa ser traçado, identificado em satyam Brahman, na verdade que é o Ser. O conhecimento não está separado de Brahman, que é a própria consciência auto-revelada. Nada é independente da Consciência.

A Consciência não é conhecimento. O conhecimento é Consciência. Satyam jñana ananta Brahmanbuddhi. A pétala é, a flor é. Você remove a palavra, mas o objeto permanece. Seja qual for a língua que você usa para designar a flor, ela será uma flor. Seja qual for o nome que você usa, o significa é sempre o mesmo.

Esse conhecimento é o conhecimento sobre aquilo que é. Portanto, todo conhecimento deve ter algo que chamamos maya. Qualquer coisa que não seja satyam jñana ananta Brahman, será maya. Aquilo que é, é o Brahman auto-revelado. O mundo deve estar aqui. Namarupa é conhecimento. Nada além de conhecimento. Portanto, Brahma é conhecimento ilimitado, usado para criar o mundo. Antes da criação Brahma é conhecimento.

Olhe por exemplo para uma semente. Nela reside potencialmente a árvore. Se você abrir a semente, você encontra lá alguma indicação da existência de raízes, folhagens, tronco, alguma coisa? Não. Nada. No entanto, tudo está lá, potencialmente, indiferenciado. Tudo é conhecimento. Depois da manifestação, você reconhece os diferentes nomes e formas: tronco, raiz, folhas, frutos, etc.

O mundo inteiro esteve potencialmente no Brahman indiferenciado, assim como a árvore esteve potencialmente presente na semente. Purna madah purna midam, purnat, purnam udachyate… Manifestado ou não manifestado, é sempre Brahman.

Aqueles que não conseguem suportar a idéia de Ishvara, possivelmente tiveram problemas com o pai na infância. Ishvara é todo o conhecimento. Antes do mundo existir, o conhecimento existia já. Porque você acorda depois de ter dormido? Quando você acorda, você acorda no mesmo lugar em que foi dormir.

Ishvara não criou o mundo. O mundo é Ishvara. Entenda a diferença. ‘Você criou o mundo e depois sentou aqui?’ Você pode perguntar isso para Ishvara. Você pode me perguntar por que eu vim ate você. No entanto, isto é o jeito que Ishvara é. Aquilo que Ishvara é, é esse jeito. Você é purnam (plenitude) pois somente há um purnam. Não pode haver dois purnams.

Um círculo não tem início nem fim. O ciclo das manifestações tampouco tem início nem fim. O presente período começou 12 bilhões de anos atrás. Com estes modernos telescópios é possível ver a luz daquela época, é possível testemunhar esses primeiros raios de luz, que ainda estão viajando pelo espaço. Essa é uma manifestação lógica.

Você deve ter ouvido falar na sopa de letrinhas. Os fabricantes de alimentos colocam alfabetos comestíveis no prato das crianças. Elas brincam com as letras. Imagine que esses alfabetos se organizem espontaneamente, por exemplo, formando a palavra ‘cosmologia’. Essa possibilidade é remota. No entanto, é algo assim o que os cientistas dizem que aconteceu na hora da criação do universo: um arranjo aleatório de fatores que deu origem ao universo e à vida.

As águas do oceano não congelam no inverno. As águas doces congelam nos lagos e rios. O sal não deixa a água do mar congelar. O ponto de temperatura de congelamento diminui muito. Nos Estados Unidos eles jogam sal nas ruas para que a neve não congele e assim poderem usar os carros. Ainda bem que não temos esse problema aqui na Índia, pois não teríamos dinheiro para pagar tanto sal. Assim como a água do oceano não congela por conta da presença do sal, da mesma forma, por conta da presença do ser, o universo inteiro torna-se manifestado. Se não houvesse conhecimento pré-existente, não haveria criação. A criação só acontece por causa da presença do conhecimento.

Uma criança nasce. Ela tem olhos, orelhas, cérebro, órgãos internos, ossos, etc. Tudo colocado junto por uma inteligência sofisticada. O autor é a mãe. Quando a criança nasce, o corpo é dado para ela. Seus pais, igualmente, são dados para ela. Tudo é dado, todas as possibilidades, o universo inteiro é entregue para a criança quando nasce. Tudo é dado. Ninguém pode reivindicar ser o autor de nada. Tudo é dado para nós.

Quanto mais você analisa a natureza daquilo que é lhe dado, mais você compreende que tudo está na forma de conhecimento. Portanto, a possibilidade da existência de alguém que dá, é muito real.

Por ser justamente uma manifestação metódica, preferimos não chamá-la criação. Ishvara, como criador, não pode ser o cara que criou o mundo e sentou lá num cantinho depois. Ishvara não é o ‘vizinho’que mora na cobertura. Ele não criou o mundo e ficou com o melhor apartamento para ele. A criação é conhecimento. Precisamos compreender isto muito bem. O mundo criado não pode ser separado do criador. Pois, se a causa material existisse separada do criador, se fossem coisas diferentes, de onde surgiu o material? Onde estava guardado antes? Ele era pré-existente? O que separa o material? O espaço. E quem criou o espaço? De que material o espaço derivou? Tempo e espaço fazem parte do mesmo pacote, na criação. O mundo é assim.

Imagine um músico que vai dormir. No sono, ele não sabe que é um músico. No sono, ele não é um músico. E o mendigo que dorme, não é mendigo no sono. E o rei que dorme, não é rei no sono. E o cego que dorme, não é cego no sono. O conceito de tempo se evapora. O conceito de espaço se esvai.

Num determinado momento, enquanto você dorme, você acorda, mas não totalmente. Retorna um pouco apenas. Você fica meio acordado. Isso é o que se chama estado de sonho. Você sonha e pensa no sol. O sol aparece no sonho. Você pensa no sol, e o sol é. Você pensa, o sol passa a existir. O sol não pode vir sem tempo nem espaço. Essa é a verdade do mundo. Junto com tempo e espaço, os objetos surgem. Assim, no seu sonho, surgem o céu, a terra, a natureza e o resto.

Aparece uma pessoa no seu sonho. É um agnóstico. O tipo de pessoa que diz manter a ‘mente aberta’. Aparece outra personagem no sonho. Este outro acredita que Deus existe e está no céu. Aparece mais um, perguntando para os demais porque eles se preocupam com essas coisas. Ele diz para os outros aproveitarem a vida. Aí aparece mais um, dizendo que a felicidade está dentro de você. Dentro de mim? Onde? No meu fígado?

Vejo as montanhas e fico feliz. Ouço música e fico feliz. Aí ele diz, mas a felicidade não está na música. Música é música. Nada mais. Ouça o que eu lhe digo. Eu experiencio a felicidade. A felicidade deve surgir de algum lugar. Quem sabe, a felicidade não pode ser experienciada como um objeto. Quem sabe, a felicidade sou eu. É por isso que você não se queixa quando está feliz. A felicidade não está nem dentro nem fora. Você é a felicidade. É o que você experiencia.

Uma pessoa, ainda dentro do sonho, diz que a felicidade está dentro de você. Outro pergunta: quem criou tudo isto? Foi o seu conhecimento do sol, da terra, da natureza, o que criou esse mundo no seu sonho. Tudo o que está no sonho, é parte de você. Você é o fazedor, e a causa material. Pegue por exemplo a situação do sonho. Você é o fazedor, o criador, o material.

Tudo o que está aqui é Ishvara. Ninguém pode dizer ‘eu acredito em Ishvara’. Ishvara não é algo sobre o qual você deve acreditar. Ishvara é para ser compreendido. A criação inteira é Ishvara. Não existe nada separado dele. Portanto, não dizemos que há um deus, ou que há múltiplos deuses. Dizemos que há somente Deus. Ishvara está presente nas variadas ordens da criação: a ordem natural, a ordem fisiológica, a ordem anatômica, etc. A ordem que governa o dharma é Ishvara. E essa ordem é satchitananda, realidade-consciência-plenitude.

Mithyam é uma palavra que descreve a realidade. Não pode ser considerada uma realidade paralela. Não é um objeto. É uma palavra que revela a compreensão da natureza. Como a palavra satyam. Satyam é aquilo que é auto-existente. Esta é uma palavra que revela sua compreensão da natureza. Mithyam não está separado de Brahman. Quando o jiva nasce no mundo, a confusão já está instalada, já que não há início para a ignorância. Ela só pode ter fim. Não tem início para ela. Se a ignorância não estava num determinado momento, o que havia no lugar dela era conhecimento. Sem início = sem final. Isso vale para tudo, menos para atma.

O ouro é ouro, independentemente da forma que o metal assuma. O ouro não muda de natureza quando sua forma muda. No panteísmo, satyam ,aquilo que é verdadeiro, sofre mudanças. No Vedanta, não.

Você é o Brahman ilimitado. Então, por que eu sou limitado? Você é ilimitado. Só que você não está vendo isso. Você não vê, por causa da sua ignorância. E como nasceu a minha ignorância? Ela não nasceu. Sempre esteve lá. Uma caverna fica milênios na escuridão. Quanto tempo leva para ela ser iluminada? O tempo de ligar uma lanterna. Só.

Então, Brahman ‘tornou-se’ muitos sem se tornar. Ele assume o status de causa do mundo. Ele precisa planejamento para fazer a criação. Como foi realizado este esforço? Isso chama-se Vikara Yoga. Vikara significa modificação. Brahman não está sujeito a nenhuma modificação. Nada do que existe neste mundo, com e sem forma, tempo, espaço, nada disso, está separado do criador. O criador é um ser consciente. E tudo o que aqui existe é um ser consciente. É consciência fora e consciência dentro. Só consciência. Tudo cabe na consciência. Não existe nada afora a consciência.

Num sonho, você vê rochas, e um sapo sentado numa pedra. A pedra não é consciente, o sapo é. Mas ambos, o pensamento da pedra e o pensamento do sapo no seu sonho, são pensamentos conscientes. Existe conhecimento subjazendo cada pensamento. Até mesmo os pensamentos relativos a coisas não sencientes, como a pedra. Da mesma forma, acontece no universo. O mundo é do jeito que é porque não pode ser de outro jeito. Nada existe afora da consciência. O mundo inteiro é Ishvara.

Até mesmo uma gota de orvalho na ponta de uma folha de grama é de fundamental importância na criação. Cada coisa tem o seu lugar na criação. Qual é a importância dessa gota de orvalho num lugar inundado? Qual é a importância de um jiva na criação?

Texto anotado e traduzido por Pedro Kupfer a partir de uma palestra de Swamiji proferida no Ashram de Rishikesh, em março de 2006.

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Swāmi Dayānanda Saraswatī (1930-2015) ensinou a sabedoria tradicional do Vedanta por cinco décadas, na Índia e em todo o mundo. Seu sucesso como professor é evidente no sucesso dos seus alunos: mais de 100 deles são agora Swāmis, altamente respeitados como estudiosos e professores.

Dentro da comunidade hindu, ele trabalhou para criar harmonia, fundando o Hindu Dharma Acharya Sabha, onde chefes de diferentes seitas podem se reunir para aprender uns com os outros.

Na comunidade religiosa maior, ele também fez grandes progressos em direção à cooperação, convocando o primeiro Congresso Mundial para a Preservação da Diversidade Religiosa.

No entanto, o trabalho de Swāmi Dayānanda não se limitou à comunidade religiosa. Ele é o fundador e um membro executivo ativo do All India Movement (AIM) for Seva.

Desde 2000, a AIM vem trazendo assistência médica, educação, alimentação e infraestrutura para as pessoas que vivem nas áreas mais remotas da Índia.

Havendo crescido em uma pequena vila rural, ele próprio entendeu os desafios particulares de acessar a ajuda enfrentada por pessoas de fora das cidades. Hoje, o AIM for Seva estima ter ajudado mais de dois milhões de pessoas necessitadas em todo o território indiano.

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Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
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3 respostas para “Deus: acreditar ou compreender?”

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