Pratique, Yoga na Vida

A plenitude está a seis passos

A grande guerra se aproxima e Dhritarashtra, o rei cego, patriarca dos Kurus, não pode dormir. O remorso, a dúvida e o medo da morte estão corroendo seu coração. Ele está preocupado com o destino dos seus filhos, que irão enfrentar os maiores guerreiros daquela era

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A grande guerra se aproxima e Dhritarashtra, o rei cego, patriarca dos Kurus, não pode dormir. O remorso, a dúvida e o medo da morte estão corroendo seu coração. Ele está preocupado com o destino dos seus filhos, que irão enfrentar os maiores guerreiros daquela era. Estes são os Pandavas, seus próprios primos, que lutarão na guerra do épico Mahabhárata. Insone, o rei invoca o grande yogi Sanatkumara para que esclareça suas dúvidas. O sábio irá instruí-lo sobre a natureza da vida e da morte, a liberdade e a iluminação. No entanto, as notícias que o rei recebe não são boas, pois não validam sua posição: ele e seus filhos precisam deixar de atropelar a justiça, ou pagarão caro por isso.

O rei não irá aprender nada com essa lição: sua cegueira não é somente física. Mesmo assim, o sábio o instrui pacientemente. Uma das coisas mais lindas deste diálogo é a prática que o yogi indica para o rei. Esta prática consiste em cultivar seis valores para ter uma vida feliz. Esses valores são os seguintes:

1) Satyam, falar a verdade.

2) Arjavan, retidão de conduta, sinceridade.

3) Hrih, simplicidade, modéstia, humildade.

4) Dama, auto-controle, disciplina, tranqüilidade.

5) Shauchan, pureza, limpeza externa e interna.

6) Vidya, autoconhecimento.

Como não é possível traduzir cada palavra sânscrita usando uma única palavra em português, vamos tentar nos aproximar desses valores através de alguns exemplos.

1) Satyam significa real. Satyam define a pessoa honesta, verdadeira e digna. Existem muitas formas de mentir; a pior delas é mentir para si próprio. A pessoa que mente para receber alguma vantagem pode pensar que está prejudicando os demas, mas prejudica a si própria. Mentir é mentir para si mesmo, é roubar a própria dignidade. Muitas vezes ficamos escravos da necessidade de reconhecimento público. Essa necessidade busca preencher a falta de auto-reconhecimento, de nos aceitar como pessoas plenas e felizes do jeito que somos. Assim, acabamos por nos mostrar diferentes do que somos para ganhar a aceitação dos demais. Sendo verdadeiros, estando em paz conosco, não teremos nenhuma necessidade do reconhecimento de outrem.

2) Arjanam é simplicidade, retidão. Devemos ser responsáveis por nossas palavras e atitudes. O mais fácil é começar exercendo o controle sobre a palavra. Com o tempo, isso irá estender-se a todas as atitudes no cotidiano. Arjavam é fazer coincidir nossas intenções, palavras e ações com aquilo que é certo: o dharma, a justiça universal. Aquilo que penso é aquilo que falo; aquilo que falo é aquilo que faço. Isso é retidão.

3) Hrih é simplicidade, paz. Uma pessoa simples e pacífica vive uma vida com o mínimo impacto de violência sobre o mundo e sobre os demais. Isso requer uma capacidade de adaptar-se que não deve ser interpretada como fraqueza, mas como pura força. A pessoa realmente forte não fere os demais, nem com palavras nem com gestos. Praticar hrih requer muita compaixão e sacrifício. Não machucar os demais significa não machucar a mim mesmo. Atropelar a não-violência é atropelar a dignidade humana. Dê a passagem no tránsito. Não queira sempre chegar em primeiro lugar. Cultive a gentileza. Deixe os outros vencerem alguma vez. Não se leve tão a sério.

4) Dama é a capacidade de dizer não, de não ceder às pressões internas ou externas. Se você recebe um convite para discutir, é desejável manter a temperança para ficar à margem dessa eventual tormenta. Se estiver com raiva, saiba que não há nada de errado com ela, mas tampouco há nada de certo. Seu compromisso deve ser para não vitimizar os demais, para não descarregar sua raiva neles. Esse auto-controle é dama. É desejável evitar palavras desqualificadoras, pois isso não traz paz nem felicidade. Use palavras doces. Faça os outros felizes. Não julgue tanto. Todo o mundo tem coisas muito boas. Ofereça flores para alguém que lhe ofendeu. Não busque somente o que está errado; senão, você vai acabar trabalhando como revisor ortográfico!

5) Shauchan é pureza. Há duas formas de shauchan: uma externa e uma interna. A externa diz respeito ao ambiente e ao próprio corpo. Na Índia, diz-se que Lakshmi, ‘aquela que brilha’, a deusa da prosperidade e da beleza, visita as casas cedo pela manhã, mas só entra nas que estiverem arrumadas. Se uma criança reclamar de ter que sair da cama para a mãe limpar, ela explica que Lakshmi não vai entrar se a casa não estiver limpa. Assim, as crianças acordam cedo para dar as boas-vindas à deusa. Faça como elas: acorde cedo. Você receberá a visita de Lakshmi diariamente. Mas, para que ela entre no seu lar, as pretensões e falsos conceitos sobre si mesmo devem antes sair. Somente depois desses visitantes indesejáveis partirem, Lakshmi irá manifestar-se.

Internamente, shauchan significa ser capaz de se livrar da culpa, da tristeza e do medo. Você pode limpar-se através de um mantra ou fazendo uma prece, procurando compreender e aceitar as diferentes situações. Pode também cultivar o pratipaksha bhavana, o sentimento oposto do que lhe incomoda. Se alguém lhe ofendeu, procure ver o lado bom dessa pessoa e aja de maneira compassiva e amistosa. Isso não é hipocrisia; isso lhe torna uma pessoa mais digna, e limpa seu coração.

6) Vidya é conhecimento. Este é o valor mais importante. Consiste em compreender que nada do que acontece está fora de lugar e que o mundo é perfeito e justo dentro do que ele é, e que nós somos perfeitos também, dentro das nossas imperfeições. Compreendendo a verdade e a justiça que subjazem todas as situações, o yogi confia na harmonia da criação. Desta forma ele vence o kalachakra, o ciclo interminável de nascimentos e mortes. Essa roda, que gira constantemente, é chamada samsara. Conhecimento é viver feliz no samsara. Viver feliz é sentir a roda girando e ficar centrado no eixo, onde não há tanta instabilidade. Assim, você vive tranqüilo, observando e apreciando.

Esta prática nos liberta das emoções indesejáveis. Mesmo se você não conseguir cultivar todos esses valores, deveria concentrar-se em seguir pelo menos um deles. Cultivando somente um, os demais virão naturalmente. Se você por exemplo estabelecer o compromisso da retidão, os outros valores irão lhe acompanhar como sua própria sombra. Aplicando-se estes valores, a vida inteira pode mudar. Na grande guerra, o velho rei e seus filhos são derrotados. No que a nós respeita, está em nossas mãos a decisão: ou nos deixamos vencer por nossas fraquezas, ou vivemos em plenitude e harmonia. Namastê!


Texto publicado originalmente na revista Prana Yoga Journal. Visite o website da revista clicando aqui: www.eyoga.com.br.

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Uma resposta para “A plenitude está a seis passos”

  1. Olá Pedro namastê, hoje pela manhã estava profundamente abatido e triste com acontecimentos que tem se dado em minha situação de vida, estava observando os acontecimentos e sinais que me chegam para ver como trancender a tudo isso quando liguei o computador assim que cheguei no escritório depois de muito tempo sem entrar aqui nessa página (uma vez que sempre faço) recebi esse presente… muito grato, voce foi o canal por onde para mim e penso que para muitos outros chegou essas palavras de verdade e luz que vão muito além de princípios religiosos são verdades imutáveis, essas palavras aqui me apontaram uma direção que sinto serem seguras rumo a um caminho que faz sentir paz… muito grato por tudo, namastê.

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