Começando, Pratique

Yoga tradicional vs. Yoga de marca

Os diferentes ramos do Yoga são etapas e não sistemas separados. Esses ramos dialogam constantemente entre si e espera-se que o praticante os use adequadamente, conforme o momento e a necessidade

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Tive recentemente uma interessante conversação com o grande erudito David Frawley sobre o Yoga na atualidade. Lá pelas tantas, falando sobre a presente confusão entre as formas tradicionais e as novas modalidades que surgem a cada estação, ele se referiu a estas últimas usando uma expressão que me deixou surpreso. Ele disse: ‘esses são Yogas de marca’ (trademark Yogas). Fiquei pasmo com essa taxativa afirmação mas, meditando um pouco no assunto, tive que concordar com este grande mestre.

Explico: as formas de Yoga pré-clássico, segundo o testemunho dos textos mais antigos (Vedas e Upanishads, até o séc. XV a.C.), são basicamente quatro: Karma Yoga, Jñana Yoga, Bhakti Yoga e Mantra Yoga (Yogas da ação, do conhecimento, da devoção e do som, respectivamente). A esses, acrescenta-se no período clássico (aproximadamente no séc. IV ou III a.C.) o Ashtanga Yoga de Patañjali, Yoga em oito etapas, que integra todos dos elementos anteriores às práticas de vitalização (pranayama), conduta adequada, concentração e meditação. Posteriormente, já na virada do primeiro milênio da nossa era, são acrescidas outras disciplinas claramente tântricas, como Kundalini Yoga, Hatha Yoga e Svara Yoga, nas quais a ênfase no aspecto prático está no despertar da energia latente, a sublimação da energia sexual e a disciplina física (purificações e posturas).

Os diferentes ramos do Yoga tradicional aqui listados são etapas (kanthas) e não sistemas separados e estanques. Esses distintos ramos dialogam constantemente entre si e espera-se que o praticante os use adequadamente, conforme o momento e a necessidade. Ensina o Srimad Bhagavatam: ‘O homem inteligente extrai a essência do conhecimento de todos os lugares, assim como a abelha coleta o néctar de cada flor’.

Dessa forma, extraindo a essência de cada prática, o yogi constrói seu próprio caminho no Yoga. Essa sempre foi a postura de grandes mestres como T. Krishnamacharya, Swami Satyananda ou T. K. V. Desikachar, que sempre se negaram a colocar um rótulo nos seus ensinamentos ou a dar a mesma solução para todos os problemas. Para estes mestres, não há uma receita única que deva ser seguida por todos os praticantes, assim como não há um prato capaz de satisfazer todos os paladares ou uma música capaz de agradar a todos os ouvidos.

A confusão que menciono acima acontece por conta da maneira em que alguns professores apresentam atualmente seus ensinamentos, usando (e conseqüentemente registrando com fins comerciais) termos sânscritos tradicionais que são característicos do Yoga antigo. Esses nomes designam muitas vezes sistemas de Yoga centrados no aspecto físico, que são apenas maneiras um pouco diferentes de se praticar as mesmas posturas clássicas de textos como a Hatha Yoga Pradipika ou a Gheranda Samhita. Sem uma adequada contextualização fica difícil para o iniciante se orientar e compreender a diferença entre uma tradição milenar e uma marca registrada. Isso acontece por exemplo com o nome Ashtanga: o método atualmente conhecido por esse nome está bastante distante do ensinamento contido no Yoga Sutra, obra onde esse sistema é exposto.

 

O melhor Yoga

A outra conseqüência indesejável que esta situação traz é que fica difícil escolher uma prática eficiente para si mesmo em meio à verdadeira enxurrada de métodos, marcas e sistemas que vemos divulgados na mídia. Algo que é marcante, principalmente no Brasil, é que muita gente apresenta seus trabalhos como ‘o Yoga mais completo’, ‘o mais antigo’ ou ‘o melhor de todos’. Cabe lembrar que não existem Yogas melhores ou mais completos do que os demais. O melhor Yoga para cada praticante é aquele que funciona bem para esse praticante, que sacia a sede de conhecimento e realização de cada um.

Quando a única ferramenta que você tem é um martelo, você tende a ver todos os seus problemas como se fossem pregos. Entretanto, isso não se aplica ao Yoga: é preciso individualizar e personalizar as práticas. Cada pessoa deve construir seu próprio caminho, usando-se das diferentes abordagens disponíveis. A modalidade de Yoga escolhida por cada um de nós deve estar em função de nossas expectativas e necessidades. Diferentes formas de Yoga não dão os mesmos resultados com as mesmas pessoas e não há consenso sobre o que deveria ser ensinado em uma aula de Yoga.

É preciso frisar que não existe um Yoga superior, mais completo ou melhor que os demais. Se um professor de Yoga afirmar o contrário, dizendo por exemplo ‘o meu Yoga é o melhor do mundo’, estará se colocando numa postura que fere e ética do sistema e confessando explicitamente que não entendeu uma das partes mais importantes desta escola de filosofia, que é a necessidade de respeitar o dharma, o princípio áureo de justiça universal. Este mês ainda, tive a duvidosa experiência de encontrar mais um professor assim aqui na Índia. Praticar com essa pessoa só não foi uma total perda de tempo porque sempre é bom termos presentes o erros que não devemos cometer. No entanto, olhando na distância, um discurso desses é absolutamente patético e lamentável.

Há métodos que se adaptam melhor a cada pessoa, em função dos objetivos de cada um. O melhor Yoga é aquele que funciona para você, que satisfaz suas necessidades e preenche suas expectativas, sejam elas quais forem. É questão de procurar até achar algo que lhe satisfaça.

 

Yoga ontem, Yoga hoje

O Yoga é inerente ao ser humano e permanece sempre vivo na memória da Humanidade. Sabemos que as crianças fazem espontaneamente técnicas de Yoga, sempre como brincadeira, sempre de forma instintiva. Isto, porque ele faz parte da nossa essência. O Yoga nasce a partir da compreensão das manifestações externas da natureza e suas influências subjetivas sobre a consciência humana.

O Yoga nasceu na Índia por uma circunstância histórica: foi lá que surgiu a primeira civilização. Durante o processo histórico de formação do Yoga, que durou milênios, foram acrescentando-se novas técnicas, experiências e constatações das sucessivas gerações de praticantes, que por momentos o enriquecem e refinam com novos achados mas às vezes o rebaixam quando, por exemplo, passam a incorporar a pequena magia popular. Entretanto, por mais que mudem alguns dos conteúdos durante essa travessia, a essência do Yoga continua sempre a mesma: transformadora, imutável e atemporal. A mensagem do primeiro praticante, atravessando as gerações, continua sendo válida para a gente no século XXI.

Tradicionalmente, o Yoga tem a ver com estar presente em todas as experiências de vida. Estar em estado de Yoga é estar atento para realizar a natureza real do ser humano. Esse processo inclui uma visão do mundo em que o yogi enxerga o conjunto da sociedade humana e o ambiente onde a humanidade acontece, como uma grande e única família. Portanto, implica que o praticante fará alguma coisa para melhorar as condições de vida dos seus semelhantes no lugar onde ele mora. Namaste!

Texto publicado originalmente na revista Prana Yoga Journal. Visite o website da revista clicando aqui: www.eyoga.com.br.

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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5 respostas para “Yoga tradicional vs. Yoga de marca”

  1. Yoga de vera não marca gente a ferro quente feito gado, é crissol: água e fogo (sentimento/sensação e ação) que gera transmutação. Em 2 cursos de Formação de Instrutores/Professores de Yoga em São Paulo mesmo também encontrei professores que se colocam em circunstâncias que os tornam duvidosos.
    Num dos cursos, menos mal (?) pois a pessoa não era praticante, estava ali porque era tido como um medalhão de conhecimento de Anatomia. Concordo que só não é perda de tempo porque aprendemos o que, como e quando não fazer.
    O problema é que são cursos de formação, os \\\’mestres\\\’ tendem a ser imitados por seus \\\’pupilos\\\’ sem questionamento (no melhor estilo faça o que eu mando e não faça o que eu faço aniquilador da ética do Yoga) e o jeito obtuso/engessado/sem compaixão de ser professor de Yoga cria linhagem.
    Perde-se nestes momentos o dicernimento, perde-se a veracidade viva dos ensinamentos do Yoga.

  2. Muito esclarecedor. Obrigada pelos comentários tão sensatos e enriquecedores. Namastê! Ana.

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