Ética, Pratique

Brahmacarya: Sexualidade Ativa ou Celibato?

Sendo o Yoga uma visão que abrange todos os aspectos da existência, a sexualidade não poderia fica de fora. Brahmacharya é o preceito que nos ajuda a viver a sexualidade, seja cultivando-a de maneira compassiva, seja transcendendo-a e renunciando a ela.

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primeiro passo

Sexualidade ativa ou celibato? Boa pergunta: sendo o Yoga uma visão que abrange todos os aspectos da existência, a sexualidade não poderia fica de fora.

Brahmacarya é o preceito que nos ajuda a viver a sexualidade, seja cultivando-a de maneira compassiva, seja transcendendo-a e renunciando a ela.

Porém, antes de entrarmos diretamente nesse assunto, vamos contextualizar o termo em seu lugar de origem: a cultura da Índia.

A palavra brahmacarya pode ser traduzida literalmente como “aquele que está perto do Ser”. Brahman, como o amigo leitor já sabe, é o Ser. Acarya é uma palavra sânscrita que se usa para designar alguém que “está perto”, ou que “conhece as regras”.

Traduz-se habitualmente como servidor ou instrutor. Combinando ambas, temos o vocábulo brahmacarya. Brahmacarya é um dos dez pilares do código de conduta do Yoga.

Talvez seja o mais incompreendido e o que se presta a mais interpretações e distorções. Arrisco-me aqui a dar uma contribuição para, eventualmente, enriquecer a discussão sobre este assunto, que é tão interessante quanto obscuro.

O brahmacarya na cultura indiana

Existem várias maneiras diferentes de definirmos este termo. No contexto da cultura hindu, ele designa os primeiros anos de vida de um humano.

A vida humana é dividida em quatro etapas: estudo, casamento, aposentadoria e renúncia. Idealmente, uma vida humana tem para os hindus 100 anos.

Desses 100 anos, os primeiros 20 ou 25 seriam dedicados à formação e ao estudo. Brahmacarya é a palavra usada para designar a primeira dessas quatro fases da vida, na qual o(a) jovem está concentrado e dedicado ao estudo e à preparação necessária para conviver na sociedade, absorvendo de seus mestres os valores universais e ensinamentos sobre o dharma.

sexualidade ativa celibato Pedro Kupfer

As outras três etapas chamam-se respectivamente gṛhasta, quando o jovem casa, constitui uma família e trabalha na sociedade; vāṇapraṣṭa, quando, uma vez aposentado, o casal se retira para uma vida mais simples, na floresta (a palavra significa justamente “vida na floresta”), e saṁnyāsa, quando a pessoa renuncia à sociedade e se dedica única e exclusivamente ao autoconhecimento e a libertação.

Tem algumas pessoas que, recebendo o chamado pela libertação desde cedo, pulam as duas etapas intermediarias, passando da fase de estudo e preparação para a busca da libertação. Essas pessoas, obviamente, não casam nem fazem os demais rituais de passagem destinados aos demais integrantes da sociedade hindu.

Na primeira fase da vida, o menino ou menina não tem idade para se casar ou pensar em namorar. O foco e a energia ficam na preparação para o convívio social, que consiste em aprender sobre si mesmo ou si mesma.

É por isso que na sociedade hindu, tradicionalmente, esses primeiros anos de vida excluem todas as formas de sexualidade. Simplesmente, a criança é criança e deve ser tratada como tal. O final dessa fase de formação e estudos coincide freqüentemente com o início da adolescência.

Brahmacarya como celibato

Por extensão, dado que estudantes não casam, a palavra brahmacarya passou a designar o voto de castidade ou celibato. É com esse significado que esta palavra entra no Yoga.

Geralmente, a palavra brahmacarya aparece por primeira vez para os praticantes através da leitura do Yogasūtra, os “Aforismos de Yoga”, texto atribuído ao sábio Patañjali, que teria vivido nos séculos entre Buda e Cristo e que, de tão famoso e relevante, é considerado uma espécie de Bíblia do Yoga. Nesse texto, brahmacarya é o quarto dos cinco preceitos de conduta chamados yamas.

Porém, traduzirmos brahmacarya simplesmente como castidade, não coincide com a realidade em que vivemos. É necessário eventualmente ressignificar essa palavra, uma vez que, se fossemos admitir que o Yoga de Patañjali é unicamente para celibatários, nem o ensinamento  nem as práticas seriam para nós, que vivemos nesta sociedade trepidante.

Pessoalmente, não conheço celibatários fora da vida monástica. Se a abstinência sexual fosse condição indispensável para se dedicar seriamente ao Yoga, acredito que a imensa maioria de nós, praticantes, teria que deixar o Yoga de lado.

Interpretando brahmacarya como celibato, há pessoas que se opõem frontalmente à atividade sexual com finalidade de se obter prazer. Isto porque, equivocadamente, elas associam prazer com perdição, culpa, pecado ou algo intrinsecamente ruim.

Na nossa modesta opinião, negar a validade do prazer é tão equivocado quanto achar que é possível ser feliz satisfazendo os próprios desejos. Outros praticantes colocam a abstinência sexual como a solução ideal para evitar perder os fluidos vitais e conseqüentemente a energia necessária para realizar a tarefa da libertação.

Naturalmente, todos os humanos buscamos o prazer e tentamos nos manter afastados da dor. Não deveríamos cultivar nenhum tipo de remorso ou culpa por termos prazer, desde que isso não fira nem machuque os demais seres.

Assumir o contrário se a pessoa não está preparada para renunciar à própria sexualidade, seria ir contra a própria natureza humana. Portanto, talvez a melhor interpretação do termo brahmacarya, desde a óptica dos humanos vivendo em sociedade do século XXI, fosse fidelidade conjugal, coerência relacional e moderação.

Veja aqui um artigo de Swāmi Dayānanda sobre brahmacarya como celibato.

Alternativas

No Yoga, assim como em muitas outras escolas de vida, considera-se a sexualidade uma força muito poderosa e preciosa. Esta força precisa ser bem administrada e direcionada, e deveria ser usada em função do bem supremo: mokṣa, a libertação.

Trocando em miúdos, isso significa que não deveríamos excluir a sexualidade do caminho de autoconhecimento, nem deveríamos separar o autoconhecimento de todos os aspectos de nossa vida, incluindo-se obviamente a afetividade e a vida sexual.

Para realizar essa integração entre liberdade e energia sexual, existem dois caminhos possíveis: o da abstinência pura e simples, e o da integração construtiva entre a sexualidade e o objetivo do Yoga.

Existem diversos e belos exemplos de pessoas santas em todas as culturas, que optaram por não se relacionar afetiva ou sexualmente com seus pares. Não obstante, por conta da força do impulso sexual, a tarefa da abstinência pode ser revelar fora do alcance da maioria dos humanos.

É olhando para essas pessoas (dentre as quais me incluo) que devemos reinterpretar a palavra brahmacarya, à luz da situação e das condições em que vivemos atualmente na nossa sociedade.

Para aqueles que consideram que não precisam assumir um voto de castidade, existe uma outra forma de interpretar o principio de brahmacarya.

Poderíamos, nesse sentido, traduzir este termo como coerência relacional ou ainda, monogamia. De uma maneira mais ampla ainda, podemos definir brahmacarya como moderação, conduta virtuosa ou refreamento dos desejos.

Neste último sentido, transcendendo a dimensão da sexualidade há ainda uma leitura do termo que inclui a frugalidade alimentar e uma dieta vegetariana, em que a prioridade na escolha dos alimentos vai para aqueles produzidos localmente, com o mínimo impacto ambiental.

O brahmacarya à luz do código de Patañjali

O pilar central do código ético do Yoga é ahiṁsā, a não-violência. Todos os demais elementos da conduta do yogin estão em função da não-violência: dela surgem e a ela voltam.

Se formos considerar brahmacarya uma das expressões da não-violência, isso implica duas dimensões: na primeira, não devemos ferir ninguém num relacionamento afetivo; a segunda, não devemos nos forçar ou exigir de nós mesmos algo que está além da nossa capacidade.

Não ferir os demais é prioridade absoluta na vida de Yoga. Por outro lado, evitar machucar a si mesmo não é menos importante.

Infelizmente, há distorções grandes em ambos os sentidos: praticantes que reprimem as emoções e a pulsação sexual, ao invés de sublimar, e falsos mestres que, alegando a necessidade de “transmutar a energia sexual”, ou arvorando-se em terapeutas, abusam descaradamente da posição de poder em que se encontram.

No caso do praticante que interpreta brahmacharya como abstinência sexual forçada, ele recolhe o fruto do seu próprio despreparo na forma de frustração e sofrimento.

No caso da pessoa que consciente ou inconscientemente olha para os outros como fontes de satisfação dos seus próprios apetites, ela recolhe o sofrimento dos demais, bem como a própria frustração. Estas formas de conduta são adharmika, contrárias à justiça divina, à justiça social, ao bom-senso, à harmonia e ao bem comum.

Trate os demais como você gosta de ser tratado, na sexualidades e na vida

A frase acima é uma maneira interessante de definirmos brahmacharya. Ninguém, nem dentro nem fora do Yoga, ninguém gosta de ser ferido ou se sentir usado.

Portanto, ninguém deveria dirigir atitudes desse tipo aos demais, seja num relacionamento afetivo, seja em qualquer outro tipo de relacionamento. Essa é a base do convívio harmonioso na sociedade, daquilo que se entende como dharma.

Até aí, o amigo leitor pode concordar, mas fica uma pergunta no ar: como agir? Talvez o segredo seja agir sem reagir. Evitar o primeiro impulso é a maneira mais sábia de driblar situações que possam produzir desconforto ou machucar aos demais ou a si mesmo. Isso não vale apenas nos relacionamentos afetivos, mas em todo tipo de situação.

Assim, por exemplo, se você sentir que um desejo surge e começa a se manifestar, mas conseguir respirar em silêncio, observando-o na distância até ele se enfraquecer, é bem provável que possa evitar as ações e reações que aconteceriam se você se deixasse arrastar por ele.

॥ हरिः ॐ ॥

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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9 respostas para “Brahmacarya: Sexualidade Ativa ou Celibato?”

  1. Não existem desvios.tudo está onde tem que estar, inclusive sua sexualidade e a dos outros. A questão é não se martirizar, nem se coibir ao ponto de transar com QQ idiota pq não se permitiu transar com quem gostaria. Com ou sem comprometimento, com ou sem ligação emocional ou mental, porque pode ser só físico TB, como uma yoga pode ser só física TB, e tá TD certo. Cada um na sua. Eu mesmo adoro uma punhetinha quando não tenho ninguém com quem transar, mas consigo hj curtir até a masturbação. No sim, no guilty

  2. realmente a boa forma sexual tem uma relação direta com o psicológico.

  3. Olá,
    Gostaria de saber o que vcs opinam sobre o relacionamento afetivo em que um dos pares resolve se abster do sexo (por estar nessa busca espiritual) e o outro, apesar de compreender a necessidade do outro, ainda não está preparado para abrir mão de sua sexualidade?
    Sou amiga do casal e vejo que existe uma forte ligação e conexão afetiva entre eles, mas esta questão está abalando o relacionamento deles.

    Namastê

  4. Brahmacharya é o período da vida em que o indivíduo se dedica ao estudo No caso do yogi, estudo do Ser, das escrituras, dos shastras, daquilo que lhe dará base para o exercício saudável do dharma O fato de ser a fase preparatória para a vida em sociedade a fase da infância e início da juventude e, portanto “assexuada” é uma característica da fase à qual, excetuando o sentido na escolha da vida monástica, talvez alguém tenha dado esse sentido sexual uma ênfase tão grande que nos esquecemos até de buscar o sentido mais claro e literal do termo, o estudo do Brahmah.
    Excetuado o caso do monastério (de onde provavelmente surgiu a ênfase no aspecto sexual da fase etária), não obstante o controle da sexualidade ou seu exercício sadio seja importante e beneficie o yogi por trazer equilíbrio e paz, tem mais sentido ver este yama como a importância do estudo das escrituras, do Brahmam, do Ser, como importante passo na prática do yoga. Namaste

  5. Fazer sexo é uma actividade semelhante a qualquer pratica de hatha yoga, por isso faça do sexo a sua \\\’\\\’prática\\\’\\\’ favorita. O sexo é considerado, salvo raras excepções, a forma de exercício físico menos aborrecida e mais agradável do mundo, para não dizer também a mais barata.
    De facto, aqueles que o praticam não se cansam de elogiar os seus múltiplos benefícios. A prática de sexo, além de dar prazer, melhora a qualidade de vida, previne doenças cardíacas, mantém-nos activos, melhora o nosso humor, aumenta a auto-estima e ajuda a combater a depressão. Como se não bastasse, também melhora os aspecto físico, em especial a pele.
    Melhore a sua qualidade de vida, com uma vida sexualmente activa. Pratique duas a três vezes por semana em complemento a outra. O esforço exigido pela actividade sexual faz trabalhar o coração, tonifica os músculos e queima calorias. Quem faz sexo regularmente é mais feliz e aparenta ser mais bonito, parece mais jovem, está em melhor forma e tem menos probabilidades de ficar doente, consequentemente poderá aumentar a sua longevidade de vida. Na actividade sexual queima-se de 3 a 10 calorias por minuto, em uma média de 100 calorias por relação.
    Uma Relação com 40 minutos de sexo consomem as mesmas 160 calorias que uma caminhada de 30 minutos! Com certeza que tudo vai depender da intensidade da relação sexual praticada, ou seja, quanto mais movimentos e mudanças de posição , mais calorias serão queimadas Se é desportista e se o preocupa o facto de ter sexo no dia anterior à competição, saiba que está provado que o sexo por si só tem poucos ou mesmo nenhuns efeitos na performance desportiva. O que poderá prejudicar a performance desportiva, é a falta de sono e as noitadas. Resumo:
    » Alivia tensões e dores musculares
    » Ajuda a combater o stresse
    » Aumenta a auto-estima, o bom humor e o ânimo
    » Aumenta a sensação de felicidade consigo mesmo e com o outro
    » Activa a circulação sanguínea
    » Trabalha a musculatura pélvica, relacionada com os músculos da bexiga, ânus, pénis e vagina
    » Melhora a pele deixando-a mais bonita
    » Melhora a qualidade do sono » Alivia dores de cabeça, reumáticas e menstruais.

  6. Em tempos de banalização da sexualidade como este no qual vivemos, a pràtica do Yoga nos aponta um caminho de moderaçao e equilibrio dos sentidos tao explorados pela midia.
    E, neste contexto eu acrescentaria Pratyahara como uma forma de sairmos do apelo exterior que nos desvia dos valores do nosso ser interior e entrarmos em comunhao com nossa natureza essencial que nos aponta o caminho do meio inclusive para a experiencia tao completa que pode ser a troca sexual com alguem quando ha amor, confiança lealdade e integridade.
    Este algo completo que transcende o prazer fisico do sexo, so e alcançado em uma realaçao profunda com a outra pessoa. E, a promiscuidade em nome da liberdade falsa que nosso tempo propoe nao e caminho para a realizaçao e sim para a degradaçao e involuçao.
    Namaste!

  7. Brahmacharya, estar perto do Ser, estar em união (Yoga) com 0 Ser, utilizando as energias da melhor maneira. Como pode ser feito?

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